Algumas notas a partir de uma obra dos Like Architects
Se há alguma coisa em que os actuais centros comerciais se tornaram exímios foi no modo astuto como aprenderam a trabalhar o que podemos chamar excedente de gozo (o plus-de- -jouir) do desempenho cénico, algo que a burguesia desde cedo aprendeu a apreciar na grande escadaria oval da Ópera de Paris. Afinal, o verdadeiro centro do edifício de Charles Garnier não era o palco nem a sala, mas a antecâmara onde a nova burguesia recém- -chegada ao poder observava e era observada com satisfação e deleite. Se o gozo que motiva os utilizadores dos centros comerciais é o consumo, o seu excedente de gozo é a encenação ambiental que transforma os edifícios em pequenos paraísos e lugares de peregrinação da religião do capital. Um dos sintomas emblemáticos dessa estratégia é a forma como estes (sobretudo em tempos de crise, diga-se) têm procurado trazer para dentro do seu corpo glorioso as mais diversas actividades, didácticas, desportivas e culturais, assumindo-se cada vez mais como instrumentos totalizantes da vida quotidiana.
Para a exposição itinerante sobre o trabalho de Andy Warhol, os Like Architects conceberam um pavilhão temporário que foi instalado no centro do Centro Comercial Colombo, em Lisboa. O denominado Temporary Andy Warhol Museum, inspirado, segundo o colectivo de arquitectos do Porto, no espaço da factory warholiana em Nova Iorque, é um organismo flexível com quatro pequenos espaços fluidos e composto por cerca de 1500 latas metálicas, numa referência à estratégia de repetição usada por Warhol e à famosa lata da Campbell’s Soup, ainda que o aumento de escala a que as latas foram sujeitas pareça remeter mais para o trabalho de uma outra artista da actualidade, Joana Vasconcelos.
Será útil referir que os Like têm, nos últimos anos, desenvolvido o seu trabalho em torno das chamadas “arquitecturas temporárias”, numa lógica de (re)utilização de materiais padronizados em contacto directo com as empresas que os produzem e que, não raras vezes, funcionam como mecenas do seu trabalho. De um modo geral, os Like cumprem à risca os novos mandamentos que há muito se transformaram em insígnias do marketing da crise actual: “hás-de ser criativo”, “hás-de ser provocador” e “hás-de ser empreendedor”. A este marketing em voga, que faz parte do seu discurso, soma-se outra récita em torno da “activação social” e da “cidade como playground”, afirmando a “sensibilidade ao clima socioeconómico” e procurando “aumentar experiências espaciais, assim como envolver a comunidade num discurso crítico”, como se pode ler em inglês na sua página de Internet.
O oportuno evento astrológico que colocou no mesmo alinhamento este pequeno pavilhão, Andy Warhol e o Centro Comercial Colombo tem a virtude de nos possibilitar algumas reflexões, não apenas em torno do trabalho deste colectivo, mas de um conjunto alargado de práticas arquitectónicas que, um pouco por todo o lado, se têm dedicado ao tema das arquitecturas temporárias. Sinais evidentes de novas necessidades, ou talvez angústias, importa contudo perceber exactamente quais são e o que significam. Será por isso importante assinalar que este pavilhão não é um caso isolado, mas integra uma estratégia que encontra a sua razão de ser, precisamente, no modo como captura e trabalha esse espaço do excedente de gozo social. Poderíamos por isso dizer que, se por um lado, a escadaria da Ópera de Paris, com os seus rituais socializantes, constitui um dos seus modelos-paradigma, o outro seria, certamente, o centro comercial, com todas as suas estratégias de consumo.
O OVO ‘KINDER’
Na lógica astuta do capitalismo, uma mercadoria nunca é apenas uma mercadoria mas sempre qualquer coisa mais, há sempre um excedente de significações, de promessas de vida, de superação de si próprio. E esse é o espaço ocupado pelas marcas, pelo marketing, mas também, pelas estrelas de televisão e pelos ícones, todo um sistema referencial simbólico de substituição e compensação: essa é a irredutível beleza do shopping, o belo como promessa de felicidade. A crítica tem-se dedicado a descodificar estes paradoxos, e o ovo Kinder é um bom exemplo para ilustrar a questão: o que importa não é o chocolate, mas o brinquedo que está escondido lá dentro, a surpresa. Isto é, não interessa a mercadoria em si, mas o vazio que ela vem ocupar no seio da eterna insatisfação. Há que distinguir o prazer do gozo: se o primeiro se relaciona com a homeostase e o equilíbrio, o último, pelo contrário, é uma pulsão libidinal impossível de satisfazer, algo que nunca se realiza plenamente e que está sempre em falta. Nesse sentido, o excedente de gozo é aquilo que escapa ao princípio do prazer e nasce de uma renúncia, de uma impossibilidade de prazer que, contudo, se transforma em prazer na dor: um gozo excessivo em que a renúncia a uma satisfação libidinal se torna ela própria satisfação. Ora, o sistema de produção capitalista encontra a sua especificidade precisamente nessa espoliação e captura do gozo (jouir), transformando-o em mercadoria, em mais-valia, isto é, em excedente de gozo (plus-de-jouir). Neste sentido, o excedente de gozo não é só o gozo tornado mercadoria, como também a mercadoria tornada gozo.
Há, então, duas ilações a tirar. Primeiro: o capitalismo assenta sobre o paradoxo de ser essencialmente um mecanismo de repressão que, perversamente, se torna fonte de prazer (um pouco como aquela síndrome de Estocolmo na qual a vítima acaba por se apaixonar pelo seu próprio raptor). É uma expropriação que assenta na seguinte fórmula: gozamos a nossa própria incapacidade de gozar. As injunções enjoy, ou just do it, procuram não tanto libertar a nossa economia libidinal, os nossos desejos, mas capturá-los, pacificá-los. Segundo: a questão essencial é que o gozo transforma-se num princípio de organização, tanto económica como política. Na injunção plenamente narcisística do enjoy, impede-se a constituição concreta de um colectivo político. E, acima de tudo, ao colonizar esse espaço somos impedidos de imaginar a formação de espaços sociais e práticas alternativas àquelas constantemente exibidas pelo trabalho laborioso do espectáculo.
É neste contexto de captura do gozo e da sua transformação em objecto (de lucro) que devemos compreender grande parte destas novas práticas arquitectónicas (e onde se incluem os Like) que têm proliferado tanto pelas cidades como pelos sites e revistas da especialidade. A questão, porém, não está apenas no facto de elas terem elegido esse espaço indiscernível do gozo como mote da sua estratégia, mas pelo facto de a isso aparecer associado um discurso de activismo social que se demonstra absolutamente contraditório com essa captura. O deslumbramento actual por estas práticas enquanto modo de reclamar uma relação perdida com a cidade, de reinventar o quotidiano urbano, de envolver a comunidade num discurso crítico, assenta não mais do que num equívoco que importa desfazer. Elas configuram, precisamente, o prazer na dor. O gozo que geram e que se materializa naquelas horas de interacção lúdica, para si próprios mais do que com os outros ou com a cidade, são o substituto, a compensação, pela impossibilidade de um real uso(fruto) da cidade, de viver a cidade enquanto cidadãos, isto é, enquanto membros activos de uma comunidade que participa nos processos de decisão política.
Neste sentido, estas práticas constituem-se, essencialmente, como branding, ou marketing (a este nível é bastante revelador que os Like se assumam precisamente como marca e não como escritório) e as injunções contínuas ao enjoy the city, ao the city as a playground, mais não fazem que transformar a cidade em mais um objecto de consumo, e, a nós, em consumidores mais do que cidadãos. Na verdade, mais não são que os ovos Kinder do parque temático em que se transformou a cidade: são o brinquedo que entretém e captura o nosso tempo livre, dando-nos a ilusão ou a falsa esperança de sermos participantes do conteúdo social da cidade. Seguindo uma fórmula lapidar de Walter Benjamin: Eles dão a possibilidade de nos exprimirmos, mas com certeza não a de exprimirmos os nossos direitos.
O paradoxo destas arquitecturas, ao qual devemos estar particularmente atentos, pode formular-se do seguinte modo: quanto mais se disseminam pelas cidades, fomentadas pelos poderes como estratégias de promoção económica ou das empresas como divulgação dos seus produtos, quanto mais transformam a cidade em lugar cool e em playground de experiências divertidas de pseudo-interacção social, mais avançam as políticas neoliberais de privatização dos espaços públicos, os processos de gentrificação violenta, a especulação imobiliária, a subida das rendas, e, por fim, a privatização do Estado, dos seus serviços e dos nossos direitos. Em suma: quanto mais afirmam que a cidade é nossa, mais esta e o Estado se transformam em património de poucos. Não são práticas capazes de envolver nenhuma comunidade, não são activadores de nenhuma emancipação social, muito menos política. São verdadeiramente (í)cones (para utilizar o trocadilho usado pelos Like numa das suas instalações), os substitutos desse direito à cidade ao qual renunciámos. Por fim, são o excedente de gozo da própria disciplina: trabalham com a própria frustração da arquitectura, com a sua renúncia de não poder ser, a sua falta de programa político e social, com o facto de se ter convertido numa máquina gigantesca de produção institucionalizada e burocratizada ao serviço da exploração, inclusive, dos próprios arquitectos.
HIPÓTESE EM ABERTO
Na sua pequena escala de intervenção, estas arquitecturas temporárias podem ser, de facto, modos operativos de participação na cidade, de ingerência nas políticas urbanas, de captar em vez de capturar estratégias de emancipação das comunidades ou de fomentar processos de participação nas políticas locais. Mas, para isso, é preciso libertá-las do círculo do gozo em que se enclausuraram e radicá-las no único lugar possível a partir de onde se pode discutir a cidade: a política (polis, cidade em grego). Isto não significa a apologia de um qualquer moralismo ascético-arquitectónico contra o gozo, mas a compreensão de que, se a arquitectura ainda pode ser qualquer coisa como uma prática artística e social, isso passará, certamente, por colocar o lúdico não como fim em si, mas como meio. Isto é, como modo essencial de perturbar a partilha institucionalizada e burocratizada dos espaços e das formas, dos tempos do ócio e dos tempos do trabalho e, por fim, de libertar o imaginário (im)possível de outros espaços sociais, de outras configurações urbanas e políticas. Só isso é que pode fazer da arquitectura, não apenas experiência lúdica, mas sobretudo, acontecimento e resposta aos problemas com que a nossa época não pára de nos defrontar.
Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 244-247.
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ANDY WARHOL:
ICONS – PSAIER AND THE FACTORY ARTWORKS
Curadoria
Maurizio Vanni
Embaixadora
Guta Moura Guedes
Projecto Expositivo
Like Architects
Local
Centro Comercial Colombo,
11 de Abril a 11 de Julho de 2013
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