Vestígios da linha de Évora-Elvas



Paulo Moreira / Carlos M. Guimarães (TEXTO) + André Cepeda (FOTOGRAFIA)

A QUIMERA DO TGV

Estação Évora–Norte. Projecto de Eduardo Souto de Moura e Adriano Pimenta

O projecto da Estação Évora-Norte fazia parte de um sonho que, na ausência de consenso, se foi transformando numa quimera. A linha ferroviária de alta velocidade em Portugal, vulgarmente chamada pelo acrónimo TGV, Train à Grande Vitesse, foi amplamente discutida, sobretudo a nível económico e político. Pelo contrário, como não é de estranhar, as suas componentes técnicas e o impacto territorial da megaestrutura não foram alvo de debates profundos, nem de avaliações públicas. Esta marginalização confirma que a arquitectura e a transformação do território tendem a permanecer, não raras vezes, na sombra da decisão política. Projectos mobilizadores de equipas imensas de técnicos e especialistas dependem quase exclusivamente de valores e vontades que escapam ao alcance dos projectistas.

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O PESO DA ARQUITECTURA

O concurso para o troço Poceirão-Caia foi lançado em Junho de 2008 pela RAVE (Rede Ferroviária de Alta Velocidade), com o objectivo de seleccionar um consórcio empresarial para levar a cabo a construção e exploração da totalidade do sistema. O projecto de arquitectura para a Estação Évora-Norte era parte integrante desse complexo programa de concurso. Era suposto ser esse o único ponto de paragem da alta velocidade entre Lisboa e Badajoz. A ‘cereja’ no cimo do ‘bolo ferroviário’.

O consórcio Elos, liderado pela Brisa e pela Soares da Costa, convidou os arquitectos Eduardo Souto de Moura e Adriano Pimenta para desenvolver o projecto da estação. Um dos motores desta parceria foi, seguramente, a experiência bem-sucedida do Metro do Porto, onde Adriano Pimenta colaborou com Souto de Moura sob a égide da construtora. O convite terá sido determinado pela constatação de que a arquitectura da estação teria um peso decisivo na escolha do vencedor do concurso. Apesar de a estimativa de custo do equipamento representar apenas 2% do valor total do investimento do troço Poceirão-Caia (cerca de 25 milhões de euros em 1400 milhões), a sua ponderação nos critérios de avaliação era de 4,5% em termos globais e de 15% no total dos parâmetros técnicos. Ao contrário de outros casos em que a arquitectura é tida como um mero acessório, neste concurso o seu peso foi positivamente considerado.

Os parâmetros do concurso eram vagos no que respeita à definição programática da estação. Adriano Pimenta relembra que essa indefinição “dificultava o ponto de partida do projecto”. Sabia-se apenas que estaria localizada a norte da cidade de Évora, aparentemente ‘perdida’ na planície alentejana. Os dois novos pontos de ligação à zona envolvente eram uma via de acesso à Estrada Nacional 18 e uma plataforma de passageiros da linha ferroviária convencional Évora-Elvas, que estava incluída no concurso do troço Poceirão-Caia.

Os arquitectos definiram um conceito que respondia à condição territorial do projecto. A estação apresentava-se como uma espécie de ‘aqueduto contemporâneo’, metáfora do carácter infra-estrutural da linha de alta velocidade. O ‘aqueduto’ é um elemento de ruptura na paisagem que, simultaneamente, se adapta com maleabilidade ao seu contexto.

Embora, de um ponto de vista formal, o desenho ‘rígido’ e linear da proposta contraste com a paisagem envolvente – quase romântica –, a opção conceptual do aqueduto gera referências históricas e contextuais. Tal como Álvaro Siza já tinha feito na Quinta da Malagueira, Eduardo Souto de Moura e Adriano Pimenta reinterpretaram o aqueduto de Évora, uma infra-estrutura do século xvi, como evocação histórica e simbólica. Enquanto Siza utilizou esse elemento como galeria técnica, uma espécie de espinha dorsal do bairro habitacional, no projecto da estação o uso da referência histórica é literal. A memória descritiva apresentada no concurso explicava esta ideia do seguinte modo:

No passado, construíram-se aquedutos atravessando a paisagem para levar água às cidades. No presente, viadutos de auto-estradas passam por cima das curvas de nível. No futuro, estas cidades estarão ligadas pela alta velocidade, sendo a estação de Évora baseada no seu próprio aqueduto.

Para alimentar este conceito foi necessário preencher o ‘vazio’ programático. Imaginando uma estação que não fosse um mero terminal de embarque e desembarque de passageiros, a equipa projectista propôs a inclusão no programa de zonas comerciais, de lazer e de restauração. Era uma proposta que apresentava alguns riscos, já que fazia depender o seu funcionamento de concessões de exploração, coisa que não estava contemplada nas bases do concurso. Esse risco foi assumido pelo consórcio, que acreditava ter no projecto de arquitectura uma das mais-valias da proposta.

ABRANDAMENTO GRADUAL DA VELOCIDADE

Na sequência do concurso, foram seleccionados dois consórcios para apresentar uma proposta técnico-financeira, conhecida nos meandros dos grandes investimentos pelo acrónimo BAFO, Best And Final Offer. Em Maio de 2009, ambas as equipas entregaram esses documentos. Na sequência desta etapa, o consórcio Elos foi declarado vencedor do concurso, em detrimento do consórcio Altavia Alentejo, liderado pela Mota-Engil.

Seguiu-se uma fase de negociação intensa com o cliente, a RAVE. Adriano Pimenta confessa que os aspectos financeiros escapavam “inúmeras vezes” à compreensão da equipa projectista, preocupada em desenvolver da melhor forma possível os requisitos que lhe eram apresentados. Porém, o arquitecto ressalva que o trabalho “compreendeu uma intensa cooperação entre os projectistas e o consórcio, de forma a cumprir o orçamento previsto”. Refere ainda que “foram realizados vários ajustamentos, quer ao nível dos materiais a aplicar, como dos arranjos exteriores e do sistema estrutural do viaduto e da estação”.

Ao contrário do protagonismo da fase de concurso, o projecto de arquitectura da Estação Évora-Norte passou a ser uma pequena ‘gota’ no ‘oceano ferroviário’. Durante este período, o consórcio efectuou estudos de procura que condicionavam sobremaneira o projecto de arquitectura e das diferentes especialidades associadas. Em determinado momento, esses estudos revelaram a dificuldade, a curto e longo prazo, em encontrar parceiros comerciais capazes de explorar os espaços de lazer e restauração propostos. Verificou-se então a necessidade de reajustar as contas globais do projecto, obrigando o Estudo Prévio da estação a adaptar-se às novas exigências.

Reformulações e ajustes são habituais em qualquer processo desta envergadura, todos os aspectos são negociados à medida que as contas vão sendo aprimoradas. No entanto, o contexto político-económico alterou-se substancialmente após a formulação do Estudo Prévio, em Junho de 2010. Entre rumores de alterações substantivas na forma de financiamento e enquadramento da empreitada, o projecto foi reformulado de forma drástica. Em Dezembro de 2010, foi entregue uma revisão da proposta técnico-financeira (baptizada Re-BAFO).

Perante a eminente queda do TGV, a equipa técnica continuou a trabalhar de forma a cumprir os compromissos assumidos, nomeadamente o prazo estabelecido para a abertura da linha, em 2015. Em Julho de 2011, a equipa técnica entregou o Estudo Prévio Final. Sem surpresa, o projecto foi chumbado pelo Tribunal de Contas. A 21 de Março de 2012, o novo Governo anunciou que o TGV era definitivamente abandonado. Depois de mais de 150 milhões de euros investidos pela Elos, a linha de alta velocidade parou.

PROGRESSOS, APESAR DE TUDO

Apesar do fracasso da RAVE, o know-how adquirido com o desenvolvimento de um projecto desta natureza não é negligenciável. A Estação Évora-Norte constituiu um trabalho de investigação e aquisição de competências que não é mensurável de um ponto de vista estritamente económico.

Adriano Pimenta diz que, embora o projecto não tenha avançado para a fase de execução e obra, “o assimilar das premissas complexas inerentes ao TGV resultaram em mais-valias inegáveis”.

Este processo trouxe a possibilidade de participar em concursos restritos a equipas com experiência em projectos do género. Cumprindo este requisito, a dupla de arquitectos foi convidada pela empresa GPO Ingeniería S.A., sediada em Barcelona, a elaborar o concurso para a Estação de Alta Velocidade de Ourense, em parceria com o arquitecto João Álvaro Rocha. A proposta foi entregue em Novembro de 2011, data anterior ao fim oficial do TGV em Portugal.

No entanto, o principal facto a reter deste longo e atribulado processo foi o mérito atribuído à arquitectura enquanto disciplina. No concurso para a Estação Évora-Norte a arquitectura foi um elemento determinante para a atribuição da empreitada, apesar de representar, em termos económicos, um pequeno ‘grão’ no imenso ‘deserto ferroviário’. Porém, apesar dessa influência inicial, os arquitectos e a arquitectura revelaram ter pouca influência no desfecho dos acontecimentos.

Pouco mais de um ano após este desfecho surgem notícias que põem de novo o tema na ordem do dia. Contudo, estas notícias são contraditórias. Por um lado, o Governo refere que “o TGV está cancelado e o projecto de Portugal é o projecto LTM” (Linha de Transporte de Mercadorias). Por outro lado, admite que a nova ligação “permite o transporte de passageiros e mercadorias”. Perante esta indefinição, resta-nos continuar a fazer projectos.

Este artigo foi publicado no J-A 248, Set — Dez 2013, p. 188-199.

O acesso rodoviário à estação faz-se através de uma nova via que se desdobra e possibilita diferentes modos de chegada: largada de passageiros, transportes públicos e táxis, serviços prioritários, circulação geral e acesso aos parques de estacionamento exteriores.

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A propensão infra-estrutural do projecto é reforçada pelo prolongamento dos elementos estruturais para além dos limites do edifício da estação. Com este gesto, a intervenção adquire plena vocação territorial.

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Neste projecto, nomeadamente no de espaços exteriores, a exuberância formal, o exótico, o elaborado não têm lugar na adaptação do território à estação; as acessibilidades constroem-se com a fluidez do trânsito que servem; os movimentos de terras, em harmonia com a orografia característica do sítio; as plantações, com a árvore-símbolo do Alentejo, podada como se de um montado se tratasse; apenas a regularidade de plantação denuncia outro uso. Esta construção dos espaços exteriores obriga a que haja um trabalho de reconstrução do sítio, para que as marcas do local ocupado pelo estaleiro e os espaços de manobra utilizados na construção da estação desapareçam. A paisagem deve reassumir a sua continuidade, nela aparecendo apenas um novo elemento, como que nela poisado, mas nela desde sempre assente. É este o principal objectivo do projecto dos espaços exteriores: construir a nova infra-estrutura numa paisagem que se quer manter, procurando a valorização mútua. [Excerto da memória descritiva do projecto]

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Os ajustes do projecto não foram significativos entre a fase de concurso e as fases BAFO/Estudo Prévio. Após as etapas iniciais, com o decorrer das negociações foi necessário proceder a alterações consideráveis. O piso enterrado, inicialmente destinado a parque de estacionamento automóvel, ficou reduzido a zonas técnicas. O cais central da linha convencional e a passagem inferior de ligação à nova estação foram igualmente suprimidos. Os espaços comerciais foram reduzindo aos poucos, desde a dispersão pelo piso térreo, passando pela concentração numa única área, e terminando na sua total ausência. Em relação à ligação à plataforma de embarque, a solução passou de um acesso mecânico directo à necessidade de criação de um piso de distribuição intermédio – mezanino –, devido a variadas condicionantes técnicas.
Programa
Estação de Passageiros, Cais da LAV / LC, Instalações Especiais e Interface Rodoviária
Localização
Évora, Estrada Nacional 18
Concurso
Setembro 2008
BAFO (Best And Final Offer / Proposta Final)
Maio 2009 / Estudo Prévio, Junho 2010
Re-BAFO (Proposta Final Reformada)
Dezembro 2010
Estudo Prévio Final
Julho 2011
Concedente
Estado Português
Concessionária
ELOS, Ligações de Alta Velocidade
Arquitectura
Eduardo Souto de Moura /
Adriano Pimenta
Colaboradores
Ana Ferreira,
Carolina Salcedo,
Maria Vasconcelos,
Paulo Moreira,
Paulo Morgado
Estruturas Viaduto da Estação
COBA, Consultores de Engenharia e Ambiente, S.A.
Estruturas da Estação
TETRAPLANO, Serviços de Arquitectura e Engenharia, Lda.
Redes de Água, Águas Pluviais, Esgotos, Mecânicas, Térmica, Electrotécnica, Acústica, Segurança
TECNEP, Estudos e Projectos de Desenvolvimento, S.A.
Catenária e Alimentação
TYPSA
Traçado e Plataforma
GIBB Portugal
Sinalética
António Queirós Design
Paisagismo
Arqt Of, Arquitectos
Associados: Manuel Pedro Melo / Maria João Amial Trigo
Imagens virtuais
Imaginarq
Agrupamento Construtor
LGV – Engenharia e Construção de Linhas de Alta Velocidade, ACE