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Fala, arquitectos (Filipe e Ana) para J-A Jornal Arquitectos. Porto, Julho 2014.



Diogo Seixas Lopes / Joaquim Moreno (Texto) / Valter Vinagre (Fotografia)

A LINHA CLARA

Centro social e cultural de Lipsum, Suíça.
Fala Atelier com A. Belkhodja & S. Maire

Nas artes como em tudo o resto, só é possível construir sobre uma fundação resistente: seja o que for que ceda constantemente à pressão, torna impossível o movimento. [...] A minha liberdade consiste assim em movimentar-me no apertado enquadramento que me atribuí para cada um dos meus compromissos. [...] Q uanto mais restrições nos impomos, tanto mais nos libertamos das correntes que amarram o espírito. [...] E a arbitrariedade das restrições serve apenas para obter rigor de execução.
Igor Stravinsky, c. 1940

FORMATO

As palavras de Stravinsky parecem ecoar no trabalho de uma nova geração internacional de arquitectos. O trabalho do Fala Atelier também labora nesta nova arquitectura de restrições auto-impostas e formatos de trabalho ditados pela circulação e pela distância. A “linha clara” que esta nova arquitectura define é uma linha de sincronização, ou de paralelismo, entre princípios gerais e factos particulares, entre formatos e aplicações. É também um movimento voluntário de sincronização das restrições territoriais e económicas impostas pelo presente, e das restrições voluntárias, das resistências internas aplicadas à forma arquitectónica. Uma nova prática apoiada em denominadores comuns partilhados no Skype. Nesta arquitectura, que influência têm as condições materiais de sincronização da prática à escala planetária? Ou, dito de outra forma, será que na aceitação do formato possível esta arquitectura descobre uma forma de expandir a sua prática, de fazer uma arquitectura mais adaptada à distância interpessoal, aos likes das “redes sociais”? Será esta uma arquitectura que substitui a noção de “tipo” pela noção de “formato”? Formato e não forma; formatar e não conformar, como num jornal, em que o formato é a estrutura de organização definida antes do conteúdo. O que o formato determina não é a futura forma de um eventual conteúdo, mas a estrutura da sua leitura. O formato determina uma relação com o público, com a audiência, habituada a navegar na paisagem informativa dos media. O formato organiza uma dupla matriz de produção/ recepção, mais ágil e adaptada à estrutura da comunicação mediática contemporânea. Uma arquitectura sujeita aos likes e às partilhas, sujeita aos constrangimentos da rede, será provavelmente uma arquitectura que antecipa esses constrangimentos e os torna constitutivos; uma arquitectura para ser partilhada.

JOVENS ARQUITECTOS EM MOVIMENTO

Os Fala Atelier são Filipe Magalhães e Ana Luísa Soares. Nascidos respectivamente em 1987 e 1988, no Porto, a sua formação teve origem na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Como tantos colegas da sua geração, este processo de aprendizagem foi complementado por intercâmbios com o estrangeiro através de programas como o Erasmus. Assim, Filipe rumou à Eslovénia. Depois, já no âmbito profissional, foram ambos trabalhar para a Suíça – com Harry Gugger, antigo sócio de Herzog & de Meuron – e para o Japão – com os SANAA, Toyo Ito e Sou Fujimoto –, num tirocínio intercontinental. Durante este período começaram também a fazer concursos em nome próprio. Nada disto, aparentemente, os distingue de outros jovens arquitectos. Estas circum-navegações resultam de protocolos universitários, mobilidade acrescida, mediatização da profissão e ausência de oportunidades no país. O que distingue os Fala Atelier nesta conjuntura é a visibilidade que rapidamente alcançaram – intramuros e extramuros –, o que constitui um pequeno, mas significativo, acontecimento. À imagem de outros casos de êxito instantâneo, como os Like Architects, a sua produção peca quase por excesso, num ritmo muito veloz que colhe de imediato a atenção de publicações e sites da especialidade. É o desempenho expedito e assertivo da geração dos millennials, que encontra nas ferramentas digitais um poderoso aliado de disseminação das suas plataformas de trabalho. Filipe Magalhães e Ana Luísa Soares têm aliás disso uma consciência clara:

Quando decidimos sair do país, não foi por razões económicas, mas sim por razões de formação. A escolha do Harry Gugger na Suíça não foi inocente. Depois, quando fomos para os SANAA no Japão, era também por vontade de estar naquele sítio. Ao mesmo tempo, produzíamos em paralelo. Trabalhamos num lado qualquer, com o portátil debaixo do braço e numa mesa de café.

O movimento permanente dos Fala Atelier foi um propulsor, mais do que um obstáculo, ao seu desempenho. Em quatro anos desenvolveram várias propostas para concursos, participaram em exposições, viram o seu trabalho publicado. Há um apelo nos desenhos e imagens por eles produzidos que explica, em parte, a atenção que lhes é dedicada. Os desenhos, representados sempre por uma “linha clara”, apresentam uma forte componente abstracta – e por isso visualmente forte –, com destaque para o contorno exterior dos edifícios e para a disposição serial da estrutura portante. Muitas vezes ficam, por isso, a parecer construções antigas ou anónimas, mas estranhamente fascinantes. As imagens, por seu lado, são emblemáticas por recorrerem à técnica da fotomontagem, ainda que feitas em computador. A sua aparência reflecte indelevelmente esta opção de fabrico, que rejeita o verismo dos renders a favor do charme algo naïf da colagem. Nada disto é novo; nem os desenhos nem as imagens. O seu estilo tem pioneiros e seguidores, bem identificados num panorama da cultura arquitectónica contemporânea. Para os desenhos, os Fala Atelier seguem a cartilha de vários escritórios japoneses, como os SANAA. Para as imagens, aprenderam com as experiências de escritórios europeus como os belgas Office. O que é novo, especialmente quando comparados com arquitectos portugueses de gerações imediatamente anteriores, é a liberdade e o conhecimento de causa com que estas referências são manipuladas e remisturadas. Por outro lado, ao contrário dos seus pares mais velhos, não parecem estar presos a dilemas identitários nem a autoridades de um statu quo vigente. Também por isso são mais velozes na sua vontade de fazer acontecer coisas, de ver resultados.

Não há movimentos, nem ideologias. Temos tantas referências e, pontualmente, sentimos a influência de um texto, de uma entrevista ou de um autor. Depois, vendo projecto a projecto, não parece ter sido a mesma pessoa que os fez. Não temos nem um estilo de edifício, nem um estilo gráfico.

Um exemplo recente das suas capacidades, entre muitos outros, é a proposta de concurso que aqui se apresenta para um centro social e cultural próximo de Genebra. O projecto reconverte um conjunto de edifícios de cariz agrícola, clarificando o desenho dos seus interiores e adaptando os mesmos aos quesitos funcionais do programa. Este processo de simplificação, rumo a um “grau zero” dos principais elementos de representação, acaba paradoxalmente por monumentalizar todo o conjunto – efeito bastante evidente no edifício principal, que passa a estar organizado por um eixo central onde, através de vãos generosos, se desenrola um renque de salas polivalentes. Este dispositivo formal cria, ao mesmo tempo, a percepção de um espaço único e uma sequência de microcosmos. Também no auditório, num edifício ao lado, o processo é o mesmo. Com a definição mínima dos elementos necessários para o uso atribuído, confiam o carácter expressivo desta arquitectura à escolha precisa dos materiais e das aberturas. Talvez por trabalharem “sem rede”, ou seja, sem grande suporte financeiro, os Fala Atelier procuram operar o mais possível “em rede”, ou seja, estabelecendo parcerias com os colegas que foram fazendo fora de Portugal. No caso da Suíça, país que continua a ser visto como um Eldorado, a participação em concursos tem implicado viagens para cá e para lá, o que leva a que o quartel-general baloice também entre ambos os lados. Esta é uma arquitectura que acontece algures entre o WeTransfer, a EasyJet e o Skype.

Não paramos de produzir, não nos lembramos de um momento em que não exista um projecto nas nossas cabeças. Estamos agora a fazer concursos maiores, com especialidades, e a investir mais tempo nos projectos. O facto de fazermos, por exemplo, concursos para a Suíça obrigou a uma investigação mais funda. Porque lá as coisas são mais lentas.

Os Fala Atelier são ambiciosos por natureza e procuram cumprir os seus objectivos o quanto antes. A medida do seu êxito é a capacidade de concretizar, que, no caso deles, continua a ser uma coisa aferida através do desenho. Ao contrário de vários colegas de geração, que enveredaram pelos resultados imediatos de processos participativos ou performativos, os Fala Atelier optaram pelo partido da forma. Ou seja, pelo partido do labor sobre uma configuração que circunscreva e sintetize uma série de factores de modo evidente. A evidência desta “linha clara” pressupõe uma crença maior na possibilidade de transformar a realidade num processo top-down, do que com arremedos bottom-up. Por esta razão, muitos dos projectos, mesmo quando de pequena escala, são mundos autónomos que se querem instaurar por inteiro. Existe, por fim, a vontade de os construir e de “levantar tijolo”, de modo a verificar se o pensamento transportado pela forma persiste na matéria. No caso dos Fala Atelier, é curioso confrontar a sua tenacidade quanto a estas aspirações com a desenvoltura dos seus movimentos, de lugar em lugar. Existe porém uma produção que não tem abrandado. Pelo contrário, procura ganhar outros instrumentos e argumentos. A “linha clara” que atravessa estas questões é um exemplo e uma exortação para os jovens arquitectos, hoje, encontrarem modos próprios de seguir um percurso.

Não temos bem uma geração. A nossa geração está dispersa e essencialmente emigrou para todo o lado. Não temos um poder de conjunto enquanto geração, não há uma voz. Mas queremos ser reconhecidos por termos, nós próprios, uma determinada posição. A vontade de ter algo nosso funciona como motor quer em termos práticos quer em termos teóricos. E, com isso, tentar fugir da sina dos jovens arquitectos que ou vão todos emigrar ou vão para o desemprego. 

A LINHA CLARA

Na banda desenhada, diz-se “linha clara” para nomear a expressão gráfica da escola de Tintin, desenvolvida por Hergé para sincronizar dualidades na gestão do efeito dramático. Apesar de usar apenas uma espessura de linha, sem sombras e com cores planas para fundos e personagens, Hergé distinguia claramente o realismo do cenário e o processo narrativo das personagens, exageradas e próximas do cartoon. O cenário reconhecível transporta o nosso mundo para dentro do mundo das suas personagens, ou então o contrário: se reconhecemos o cenário, podemos esperar encontrar as personagens que o habitam entre os leitores que o reconhecem. Neste sentido, a “linha clara” é um formato: organiza um modo de leitura, é determinado antes de qualquer narrativa concreta, e é simples de enunciar e partilhar. Para uma geração paradoxalmente móvel e disseminada, num contínuo movimento que quase nunca anula a distância, a lógica simples de um formato pode ser a aleatoriedade que permite a precisão de execução descrita por Stravinsky. Para uma geração crescida na ressaca dos formalismos – e que percebeu que ao formalismo faltava, quase sempre, a inteligência artificial do feedback, a capacidade de deformar as causas com os efeitos –, a “linha clara” de um formato é talvez uma maneira muito moderna de pertencer ao seu tempo e de partilhar angústias geracionais. Uma frase-chave, uma construção lógica da forma, um modo obsessivo de organizar a arquitectura, de representar, de partilhar ideias. São modos de inclusão, de ser arquitecto neste formato.

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 356 – 365.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LIPSUM, CENTRO SOCIAL E CULTURAL
Localização
Grand-Saconnex, Suíça
Lançamento do Concurso
Dezembro 2013
Data de Entrega do Concurso
Março 2014
Publicação dos Resultados
Abril 2014
Valor Total dos Prémios
100 000 CHF
Número de Concorrentes
51 propostas
Projectos Premiados
5
Promotor e Organização do Concurso
Ville du Grand-Saconnex
Área de Construção
4600 m2 (terreno)
1725 m2 (construção)
Arquitectura
Fala Atelier, com Ahmed Belkhodja e Samuel Maire
Estruturas e Especialidades
David Lombard