Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura, Guimarães
A paráfrase que retive da apresentação que Eduardo Souto de Moura fez do livro sobre as imagens que envolvem o seu processo de projecto – o Atlas de Parede: Imagens de Método – foi a referência à justeza editorial do livro, à sua oportunidade e à ausência de oportunismo. O livro contribuía substancialmente para o presente, era tempestivo, oportuno; mas não mobilizava esta oportunidade para proveito próprio, não era oportunista. Recordo que esta definição liminar fazia eco com o lugar e o momento em que a presenciei: no arranque de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, no CAAA – Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura. Era fácil as coisas serem diferentes, um livro à boleia de um reconhecimento mundial, e um pequeno espaço cultural dedicado às artes e à arquitectura à boleia de mais um episódio da cultura do capital europeu chamado Capital Europeia da Cultura. Mas o livro era reflexivo, não comemorativo; as imagens de método funcionavam em feedback, reinventando as causas com os efeitos. E a persistência do espaço com o nome impronunciável demonstra que o capital da cultura foi um empurrão, não o horizonte ou a estação terminal como noutras paragens. Mas o que é o CAAA e o que fez com as oportunidades que lhe surgiram?
Para quem chega pela primeira vez, o CAAA é uma fábrica pintada de preto. Como está a 30 segundos do shopping e o empedrado da rua em frente cheira a centro histórico, a demão de tinta na velha fábrica marca logo pontos na regeneração urbana, ou de modo mais congenial, na invenção de urbanidade. Encontrar uma fábrica assim do outro lado do atlântico implicaria uma viagem a um Brooklyn mesmo alternativo, aqui a oportunidade sexy do loft, da fábrica abandonada à espera de uma reciclagem artística, está perto do Largo do Toural e do sítio onde nasceu Portugal. Nesta capital da cultura a “baixa” é cheia de contrastes. O CAAA é parte activa desta paisagem urbana transgénica, composta de elementos reconhecíveis reorganizados numa sequência manipulada. A patine sexy de Brooklyn foi enxertada numa fábrica de Guimarães. Os dois pisos do interior fazem de loja e sobreloja, são frente de casa e espaço para exposições, concertos e eventos em baixo; servem para reflexão, produção, investigação e residências em cima. Os balões flutuantes de Mylar (modelo Warhol) a esconder o tudo-à-vista certificam a manipulação genética da psicogeografia: arquitectos, artistas, cineastas, fotógrafos, músicos, designers, associados numa infra-estrutura de produção e exibição: uma Factory. Dantes era uma fábrica, agora também, mas de outras coisas.
Galeria, black-box, estúdios, sala de ensaio, ateliers são em si um valioso acrescento à infra-estrutura cultural de Guimarães. Uma galeria de arquitectura que também mostra fotografia, cinema, performance, dança, artes visuais; é boa vizinhança neste momento de redefinição da prática e do papel social da arquitectura. Mas o CAAA (o nome parece um acidente de registo de domínios da Internet) tem outros romances, prospera com outras oportunidades. Um destes outros impulsos foi o resgate oportuno de uma biblioteca ameaçada de despejo. Quando o CAAA abriu, no final de 2011, havia uma sala reservada no piso de cima, com caixotes de livros amontoados a um canto e um road movie a passar em loop. O filme documentava o resgate de uma colecção de livros que um intelectual errante tinha armazenado algures em França e que estava ameaçada de despejo, quase a ficar sem tecto. A biblioteca que a errância de Yehuda Safran tinha deixado atrás a caminho de Nova Iorque, através de uma mistura de cumplicidades e sentido de oportunidade, estava a caminho de Guimarães. O castelo de livros com que Yehuda Safran tinha abrigado o seu trabalho sobre Adolf Loos ameaçava ruína. As redes de relações inesperadas que uma colecção de livros estabelece, as conversas secretas entre eles, a teia de fios de Ariadne que permitiam reconstruir ideias, o saber que o acumular de uma biblioteca produz, arriscavam ficar na rua. Através da hospitalidade e do sentido de oportunidade do CAAA, a biblioteca de um itinerante ganhou uma casa; o road movie era afinal o documentário de um regresso a casa. Agora, reunida numa sala com o nome na porta, esta soma de livros continua a ser uma colecção, um arquivo de um universo pessoal e singular, mas a porta aberta torna-a simultaneamente pessoal e pública, singular e partilhada. Um oportuno apoio para pequenas bibliotecas públicas da Fundação Calouste Gulbenkian (a tal que tinha uma frota de bibliotecas itinerantes) permite actualmente a sua catalogação. O fruto de todo este romance constitui um legado, e custodiar este legado segrega memória, vontade de permanência e compromisso intelectual; faz durar. O lastro temporal da colecção projecta-se no centro. A cerimónia da viagem dos livros está guardada, agora é possível viajar neles na sala de leitura/centro de documentação.
O compromisso intelectual com um legado implica o seu uso, o trabalho sobre ele e sobretudo a partir dele. A exposição Adolf Loos, Nosso Contemporâneo, que neste momento está numa outra itinerância e em trânsito para outras paragens, é uma evidência do potencial deste compromisso com a cultura arquitectónica. A exposição não apostava em objectos raros ou com pedigree, em originais causadores de reverência ou espanto, era mais que tudo a partilha de uma inquietação, de uma pergunta: Como pensar Adolf Loos hoje? Qual pode ser o seu contributo contemporâneo? Quais os ecos da sua prática e da sua teoria? Como se posicionam nomes sonantes da contemporaneidade sobre a sua obra? Quem quer ainda construir a grande coluna dórica? O acervo documental da biblioteca serviu para ilustrar a viagem das ideias de Loos no seu tempo e até nós, mostrando os livros e revistas que publicou, bem como as traduções e republicações, as mudanças de contexto e perspectiva. À boleia desta base, a exposição cresceu na interacção com as pessoas e os lugares; em trânsito e em construção. Esta pequena conversa engendrada no CAAA está agora numa outra versão em Viena e a caminho de Nova Iorque. Este trabalho a partir da documentação da biblioteca esclarece outra das ambições do CAAA: ser um lugar de construção de ideias, não apenas um espaço de exposição. O CAAA quer manifestamente contribuir para o debate arquitectónico, procura um compromisso disciplinar com a arquitectura como produção cultural. O CAAA é assim, entre outras coisas, uma factory reciclada, uma biblioteca resgatada e um centro de investigação; flexível e polivalente como convém nos dias que correm, mas claro na sua cumplicidade com uma visão expandida da arquitectura.
Actualmente o Centro para os Assuntos não cheira a fim de festa, mas, como qualquer lugar ou instituição “sem fins lucrativos” que se proponha multiplicar olhares, dimensões, pertenças, oportunidades ou escalas, está num momento de reflexão pós-festa. Entretanto já sobreviveu tanto ao apagão que encerrou outros espaços, como ao congelamento que preserva uns restos embalsamados para turistas atrasados. No entanto impõe-se perguntar: Qual será o combustível para um movimento mais perene? Para um CAAA duradouro? Talvez o seu segredo seja andar em boas companhias, talvez as artes ainda tenham assuntos pendentes com a arquitectura. Mas a pergunta maior de como inventar um horizonte para além dos grandes eventos impõe-se a todos, impõe-se à arquitectura. O CAAA ajuda a colocar a questão.
Este artigo foi publicado no J-A 247, Mai — Ago 2013, p. 156-158.
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