Um dia após o Ocupe Estelita, alguém apagou as frases escritas pelos activistas, mas o conflito permanece. Fotografia Direitos Urbanos / Divulgação. https://direitosurbanos.wordpress.com/



DIEGO INGLEZ DE SOUZA

OCUPE ESTELITA

O CAIS JOSÉ ESTELITA

Ao longo dos quase cinco séculos de história da capital pernambucana, foram muitas as vezes em que se anunciou um “Novo Recife”. Desde a Batalha dos Guararapes, passando pelas insurreições do período colonial, imperial e republicano, ditatorial ou democrático, também foram muitas as lutas que envolveram o “Povo dos Arrecifes” e que tiveram a cidade como cenário de embates, conflito, resistência e conquistas.

Nos dias que correm, foi um consórcio de construtoras que arrematou uma porção significativa de terrenos no Cais José Estelita, próximo do centro histórico da cidade. O consórcio pretende construir uma dúzia de edifícios com cerca de 40 andares cada, equivalentes aos que brotaram como cogumelos na paisagem da cidade a partir de meados dos anos de 1990. Com o progressivo interesse do mercado imobiliário pelo centro histórico da cidade, consequência dos problemas crónicos de mobilidade que a cidade enfrenta quotidianamente, o que era figura – o panorama da Mauriceia retratada por Franz Post, com as suas igrejas barrocas, as arquitecturas eclécticas do século XIX e modernistas do século passado – passa a ser fundo, para usar os termos do arquitecto e urbanista Luiz Amorim.

Bem perto do Cais José Estelita há exemplos concretos deste modelo de empreendimento: das famigeradas “Torres Gémeas” (erguidas abruptamente num processo carregado de irregularidades e transacções nebulosas), à construção de vários espigões na Rua da Aurora, passando pelos diversos projectos para a outrora favela de Brasília Teimosa, na outra margem do estuário, onde surgiram nos últimos dez anos diversas novas torres revestidas a vidro e chapa metálica. Ao deparar-se com tal dinamismo aparente do mercado imobiliário, o estrangeiro perguntar-se-á certamente se na cidade circula tanto dinheiro que possa comprar e manter tantos apartamentos e escritórios de luxo.

Quase sempre construídas aos pares, estas torres de vidro espelhado e alumínio lembram pilhas alcalinas em prateleiras de supermercado, cujas vendas e promoções também são anunciadas nos jornais e na televisão. Símbolos de um certo vigor da construção civil e dos negócios imobiliários da capital pernambucana, estes novos edifícios acabam por acentuar os contrastes na paisagem de uma cidade que convive há décadas com uma crise habitacional crónica, que, nos anos de 1970, lhe valeu o apelido de Mucambópolis.

DA PRODUÇÃO CULTURAL À LUTA URBANA

A Manguetown da década de 1990, hoje Hellcife, é epicentro de uma produção cultural múltipla, que irradia e acolhe expressões significativas, não só para a região mas para todo o Brasil. Essas expressões culturais são muitas vezes construídas sobre as tensões e os conflitos urbanos que se cristalizam em bairros da cidade. Filmes recentes da mais nova geração de cineastas pernambucanos, como O Som ao Redor (2012), de Kléber Mendonça, ou os documentários Um Lugar ao Sol (2009) e Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro, nutrem-se precisamente dos embates característicos destes territórios urbanos e das suas fronteiras, tendo por assunto os atritos entre visões do mundo dissonantes e as suas consequências no espaço urbano. São episódios de uma incrível saga dos homens-caranguejos contra os tubarões da especulação imobiliária, história que opõe distintos projectos de cidade e leituras antagónicas da paisagem e do que é o “património” histórico e natural. É um conflito que hoje atinge o centro geográfico e político da cidade, mobilizando questões fundiárias, económicas e urbanísticas.

É neste contexto que se forma o movimento Ocupe Estelita, organizado a partir de 2012 para questionar o projecto Novo Recife e impedir as demolições dos armazéns que ocupam o Cais, iniciadas sorrateiramente pelas empresas construtoras numa madrugada de 2014. A reivindicação parece tão justa quanto simples: criar canais de participação popular nas dinâmicas de construção da cidade, habitualmente monopolizadas pelas grandes empresas construtoras, que, por vezes, se associam ao poder público através de artimanhas de gabinete. Ao promover a presença física da população, seguindo modelos de acampamento inspirados em movimentos de ocupação estrangeiros, as actividades propostas pelo Ocupe Estelita acabaram por construir situações ímpares de encontro entre os habitantes empobrecidos da região e ocupantes efémeros que organizaram aulas abertas, oficinas, debates, concertos e espectáculos. Estes espaços residuais, pouco presentes no quotidiano dos recifenses, ganharam uma nova vitalidade. O movimento Ocupe Estelita promoveu o encontro da classe média, profissionais da cidade e das universidades, com a população local, tendo como objectivo pensar um projecto alternativo para a área dos armazéns do Cais José Estelita e do pátio de manobras ferroviárias, reclamando o seu “direito à cidade”.

A principal inovação na forma que esta luta tomou talvez seja o facto de contar com a colaboração activa de juristas como urbanistas, “judicializando” o conflito e utilizando como recurso os limites e caraterísticas das leis, desta vez em favor das reivindicações populares. Assim, conseguiram obter vitórias expressivas, e contribuir também para ampliar os debates para além dos círculos restritos dos profissionais da cidade – o que eram argumentos especializados entre engenheiros, urbanistas, arquitectos, políticos e outros técnicos ao serviço de empresas privadas ou públicas foi amplamente partilhado. Os campos mais diversos foram capazes de produzir crítica e pensamento em torno da inviabilidade deste “Novo” Recife. Esse debate, hoje disponível online através da plataforma Direitos Urbanos, impressiona pela sua consistência, a que não é estranho o facto de ter tido a colaboração de diversos professores, activistas e intelectuais envolvidos com o urbanismo no seu sentido mais amplo.

UMA CIDADE PARA TODOS

Os conflitos continuam: enquanto o grupo de empresas construtoras parece associar-se ao município para escudar o avanço do projecto, o Ocupe Estelita conta com o apoio do Ministério Público Federal e de órgãos de salvaguarda do Património Histórico e Cultural para tentar preservar o direito à paisagem e aos diversos monumentos do lugar. Um dos recursos fundamentais com que contam os activistas é o pedido de classificação do pátio ferroviário, dos carris e equipamentos que constituem testemunhos materiais da implantação da segunda ferrovia brasileira, já de 1855-1858. Ao mesmo tempo, a recente declaração do prefeito da cidade, de que não haveria lugar para “boquinha” e que o projecto “iria subir”, evidencia o comprometimento dos políticos locais com um projecto mercantilista de cidade. O Ministério Público Federal considera “prematura e inoportuna” a aprovação pela Prefeitura do projecto de lei para a área, em virtude da importância do património histórico em jogo e dos impactos ambientais desta iniciativa pretensiosa.

Por entre a turbulência das crises económicas e políticas que agitam o Brasil, entre elas os escândalos de corrupção pelo financiamento de campanhas eleitorais por grandes empresas e construtoras que, mais tarde, esperam receber favores e oportunidades de conveniência, nada parece estar definido no panorama do Recife. Ainda que a história da capital pernambucana mostre que foram muitas as vezes em que a transformação radical da paisagem da metrópole tropical se cumpriu por caminhos tortos, os próximos capítulos desta novela rocambolesca ainda não foram escritos. A originalidade do movimento Ocupe Estelita está a tornar-se uma referência para as lutas urbanas, e a cidadania está a conquistar terreno no Recife.

Este texto foi publicado no J-A 252, Jan–Abr 2015, p. 586–589.

Correspondente em Recife