Trabalhar Além-Mar
Com a escassez de encomenda pública e privada em Portugal, muitos arquitectos têm procurado trabalho em territórios além-mar. Neste processo, Angola e Moçambique, países de língua oficial portuguesa, destacam-se como mercados apetecíveis para as indústrias de transformação do território. Fomos ao encontro de três empresas instaladas nestes dois países: Iperforma – Arquitectura e Engenharia (Porto), Pitágoras – Arquitectura e Engenharia Integradas (Guimarães) e Central Arquitectos (Braga). Na conversa participaram o engenheiro Daniel Quintã (sócio fundador da Iperforma), o arquitecto Raul Roque (sócio fundador da Pitágoras) e o arquitecto Nuno Torres (gestor de produção da Central Arquitectos). Espera-se que os testemunhos contribuam para um entendimento das vantagens, dificuldades, aprendizagens e incertezas que estas experiências carregam. Apresentação J-A – O engenheiro Daniel Quintã, sócio fundador da Iperforma, trabalha em Angola desde os anos de 1990. Pode falar-nos sobre o vosso percurso? Daniel Quintã [DQ] – Fundei a Iperforma em 1983. Tinha uma ânsia muito grande de regressar a Angola, porque era natural de lá. Nesse momento, em Portugal, tínhamos muito trabalho. Não andava à procura de encomendas, mas sim das minhas raízes, das minhas origens. Fui convidado em 1991 para resolver um problema num reservatório de água na fábrica de cervejas Cuca, em Angola. Aproveitei essa viagem para bater à porta dos gabinetes de projecto que havia em Luanda. Para minha surpresa, só identifiquei um gabinete de projectos na lista telefónica: a Empresa Nacional de Elaboração de Projectos [ENEP]. Angola atravessava o período do comunismo e havia apenas uma grande empresa pública de projectos. Levei currículos da Iperforma e consegui uma audiência com o director-geral. Senti que ia fazer uma figurinha triste, que ele iria deitar o meu currículo para o caixote do lixo. Apesar de termos alguns trabalhos, a minha empresa na altura era pequena. Então, adoptei uma estratégia diferente: “Vou levar um currículo como cartão-de-visita, mas vou ter de oferecer alguma coisa… Vou oferecer estágios a técnicos angolanos.” A oferta foi muito bem recebida. Foi assim que iniciámos o trabalho com Angola. A partir daí, foi como uma semente lançada à terra, que se lança e depois germina. No ano seguinte, comecei a conhecer outras pessoas, e outras, e outras. E, curiosamente, fui reencontrando colegas que tinham estudado comigo (fiz a instrução primária, todo o liceu e o primeiro ano da universidade em Luanda) e que hoje têm posições de destaque na sociedade civil angolana. Esta rede de conhecimentos foi determinante. Hoje, temos uma parceria com a Soapro, um grupo angolano, com uma troca de 20% de participações. O responsável pelo grupo Soapro é o engenheiro Domingos Guimarães. Coincidência das coincidências, os nossos pais tinham sido sócios muitos anos antes e não nos conhecíamos. Isto gera uma grande empatia. J-A – A experiência da Pitágoras é mais curta em Angola. Incide sobretudo em Moçambique. Pode contar-nos a vossa experiência? Raul Roque [RR] – Para nós, a experiência em Angola é quase inexistente. Fui lá em 2008 e percebi, ao fim de dois dias, que tinha chegado muito tarde. Tinha um contacto de uns investidores que nos propuseram fazer um projecto com alguma dimensão. Mas as coisas não eram muito claras. Tínhamos de estar envolvidos na parte empresarial de uma forma que apresentava algum risco… e recuámos. Havia uma dificuldade: para poder constituir uma empresa, precisávamos de ter sócios angolanos. Enfim, era tudo muito complicado. Fiz uns projectos para Benguela e Luanda, a partir de cá, que chegaram a ser construídos, mas nem sequer acompanhámos a obra. Entretanto, o meu irmão e sócio foi a Moçambique, e a sensação que teve foi precisamente contrária à de Angola. Maputo era uma cidade extraordinária: podíamos abrir uma empresa, conseguir autorização de residência, tirar visto na fronteira, etc. Em Angola era muito complicado. Não temos uma estrutura que nos possibilite fazer grandes investimentos. Portanto, como não podíamos ir para muitos lugares, decidimos apostar em Moçambique. Não nos interessava ir para fora com currículos e livros. Queríamos criar empatia, cultivar relações pessoais e estar lá bastante tempo. As pessoas têm de sentir confiança em nós. São processos demorados, que implicam uma disponibilidade financeira muito grande. Naquele momento, foi possível porque tínhamos muita gente. Esse é um factor importante a ter em conta: ninguém consegue ir para fora se não tiver meios financeiros para isso. É um investimento a longo prazo, não se pense que se fica rico logo no primeiro ano. Foi um grande esforço. Por isso, abandonámos Angola e começámos a desenvolver-nos em Moçambique. J-A – Que dificuldades é que a Central Arquitectos sentiu? Nuno Torres [NT] – A Central Arquitectos é uma empresa muito jovem. A nossa ida para Angola foi também uma questão de oportunidade e momento. Nos finais de 2006, fizemos o estudo prévio para um terreno de 64 hectares, e as coisas foram-se desenrolando. Em Abril de 2007, apresentámos o nosso primeiro projecto em Benguela, o Salinas Village, com a chancela da Mota-Engil. A obra começou, mas a meio do processo os pressupostos do que foi projectado ficaram obsoletos e o projecto foi suspenso. Isto obrigou-nos a refazer o projecto e ajudou-nos a entender melhor o mercado, as vivências locais e a falar melhor sobre a arquitectura angolana. No final de 2007, formámos a Central Angola, sediada em Luanda, onde temos uma participação com outros sócios. Numa fase inicial, foi uma tentativa de exportação. A nossa encomenda é 100% privada. A nossa rede de contactos baseou-se sempre na confiança. As amizades trouxeram contactos, os contactos trouxeram projectos e os projectos trouxeram contratos. Muitas vezes fazemos projectos que não geram dinheiro, são projectos de investimento em que o risco é nosso. Mas ultimamente temos conseguido ter retorno. O Vale Machado é o nosso ponta-de-lança. Está em Angola mas os projectos são feitos cá. Temos uma parceria em Luanda com uma empresa de engenharia. Anteriormente, fazíamos projectos com engenheiros de cá, mas, quando era preciso resolver problemas, éramos nós quem dava a cara e isso começou a ser insustentável. A partir daí, impusemos como regra que a engenharia tinha de estar presente e responder por si. *** Honorários J-A – Gostaríamos de ter uma noção da facturação que têm nesses países, proporcionalmente à facturação em Portugal. NT – Fomos para Angola com um projecto e um valor de honorários que nos permitiu alavancar a internacionalização. Há uns anos ninguém questionava honorários. Apresentávamos um preço e os clientes pagavam. Actualmente, mesmo em Angola, há especulação e já se começa a negociar. Desde 2007, temos um registo de facturação internacional. O volume de facturação é muito superior à quantidade de horas gastas, em comparação com outros projectos, devido ao valor dos honorários de que estamos a falar. No ano passado, 90% da facturação, directa ou indirectamente, foi feita para Angola. Este ano estamos na ordem dos 75%. A Central Arquitectos é uma empresa de arquitectura: fazemos projectos, mas no final do mês temos de pagar salários. Temos o nosso escritório medido ao minuto, com uma gestão que nos permite controlar os projectos e a empresa. Isto permite-nos organizar os projectos a longo prazo de forma sustentável. RR – Nós ainda não atingimos isso. Felizmente, ainda continuamos a ter bastante trabalho cá. Naquele momento, saímos mais por vontade do que por necessidade. Mas, pelo volume de trabalho que se faz lá fora, é fácil inverter a balança. Com dois ou três contratos atinge-se uma percentagem grande. Neste momento, temos cerca de 40% da facturação fora, mas rapidamente vai chegar aos 90%. Por duas razões: primeiro, porque lá começa a crescer; segundo, porque aqui vai, não digo diminuir, mas digo acabar. Portanto, qualquer dia vai ser 100%, ou 98%. NT – Felizmente temos trabalho cá. Não são coisas muito visíveis, são discretas. Mas temos 17 quadros na empresa, é uma máquina que custa algum dinheiro. Por isso, temos de fazer uma ginástica muito grande com a tesouraria. Se alguém nos paga a 30 dias é uma sorte. 90, 180, um ano, dois anos… há de tudo. Tivemos pagamentos em Angola que demoraram alguns anos, e outros que ainda estão a correr. Tudo isto é muito difícil considerando a crise, os custos fixos, a especulação do mercado, a concorrência desleal… que infelizmente acontece. RR – E tem de se ter em conta que a estrutura produtiva tem de estar, na sua maioria, sempre aqui. DQ – No ano passado tivemos 95% de facturação em Angola, 3% em Moçambique e 2% em Portugal. Para nós, o mercado português é absolutamente residual, inexistente. E, no entanto, temos um trajecto de trabalho em Portugal filiado nos grandes agentes da economia nacional: o grupo Sonae, o grupo Amorim, a Unicer, a Siderurgia Nacional, as petrolíferas, etc. Nunca trabalhámos para câmaras municipais, nem para ministérios. Nem participámos na construção que se fez muito em Portugal no desenvolvimento imobiliário, trabalhamos essencialmente para a indústria. A nossa experiência passa mais pela realização de centros comerciais, de unidades hoteleiras, unidades industriais, postos de abastecimento de combustíveis, entre outros. Tendo nós este nível de especialização, não deixamos de sentir a crise em Portugal. Hoje em dia, o mercado está completamente parado. Já em Angola beneficiamos do trabalho do sector público. O grande investidor não é o sector privado, é o sector público. Aí é que está o grande orçamento. E aí temos um trabalho transversal, não só ao nível dos ministérios, mas também dos governos provinciais e das empresas públicas participadas pelo Estado. É nesse segmento que temos o nosso core em Angola. *** Corrupção J-A – Qual a vossa percepção sobre corrupção, sistematicamente considerada intrínseca aos sistemas abordados nesta conversa? À luz da vossa experiência, pode considerar-se a questão efectivamente diferente das práticas europeias e portuguesas? RR – Não, é igual. Eu acho que é igual. Depende do grau. DQ – Como em Portugal trabalhei essencialmente para o sector privado, nunca senti o problema da corrupção. Ao contrário, já tenho ouvido muitas histórias de corrupção no sector público do nosso país. Ainda há dias ouvi uma daquelas histórias que envergonham. Muitas vezes, queremos ser puritanos naquilo que os outros países devem fazer, quando não somos um bom exemplo para ninguém. Agora, há corrupção em Angola? Há. Mas em Portugal também há. Mas isso é para os tribunais resolverem, não é para nós. RR – A maior parte do nosso trabalho cá, até agora, foi obra pública. E não há diferença nenhuma entre o que se passa cá e o que se passa fora. Não vou dizer que há corrupção ou que não há. Há um mercado… Mas o que se diz relativamente aos países africanos não é assim tão diferente. DQ – Há uma máxima de que se ouve falar muito, e creio que é igual em toda a parte do mundo: muitas pessoas estão nos lugares que ocupam não por aquilo que ganham, mas por aquilo que o lugar lhes dá a ganhar. Isto já me foi dito por um político aqui em Portugal, vereador de uma câmara municipal, dizendo que os técnicos da câmara não trabalhavam pelo dinheiro que ganhavam mas pelo dinheiro que a posição lhes dava a ganhar. A corrupção é isto. RR – Creio que a questão da corrupção tem a ver com a forma como as instituições trabalham. Na primeira obra pública que fizemos com alguma dimensão, na primeira reunião de obra o engenheiro responsável pela fiscalização por parte da câmara disse: “Atenção que nós, de acordo com a nova legislação, não podemos ultrapassar 25% de obras a mais.” Foi assim que começou a reunião. E essa obra teve 1,2% de desvio orçamental. Nas nossas obras, nunca tivemos um desvio orçamental superior a 3%. Portanto, a questão não é a corrupção, mas sim as pessoas, as instituições, a forma como nos relacionamos com elas. Se quisermos entrar nisso, entramos em qualquer lado. Aqui, se calhar, até mais do que em Angola. Se não quisermos, não entramos. Há um mito de que se vai para fora, e é tudo corrupto. Não é nada disso, é igual em todo o mundo. As pessoas actuam e nós actuamos conforme queremos. NT – Cada um vai até onde quer. *** Concorrência J-A – Como se têm adaptado relativamente à concorrência com empresas locais, portuguesas, brasileiras, libanesas ou chinesas? RR – Os chineses são um caso à parte. Os outros são terríveis. Infelizmente, Portugal está numa situação muito difícil. Há gente a oferecer tudo de borla. Isto torna as coisas muito difíceis, pelo menos a um determinado nível. Mas os clientes começam a perceber que lhes fica mais barato trabalhar com alguém que cobre um preço mais caro do que estarem a meter-se em aventuras. Percebo que haja pessoas com dificuldades, mas creio que o caminho não é esse. Numa conversa de trabalho com uma empresa de origem luso-moçambicana, que gere fundos de investimento imobiliários ingleses, apresentaram-me um concurso de ideias com arquitectos portugueses conhecidos. Tiveram muito material de borla: projectos completos, com vídeos, imagens virtuais… Tudo de borla. Eu não tinha nada para lhes oferecer. Há uma coisa que eu não faço: trabalhar de borla. Isto é dramático. É fundamental que as pessoas percebam que assim não vão a lado nenhum. Estão a desvalorizar o seu próprio trabalho. Isto acontecia cá – agora menos, porque não há trabalho – e está a começar a acontecer fora. J-A – Como estão a viver essa mudança na dinâmica do mercado? DQ – É como no futebol, há vários campeonatos. Com algumas excepções, não vale a pena concorrer com chineses, nem com brasileiros, nem com libaneses em Angola. Os chineses têm os grandes contratos públicos em Angola. Oferecem a obra com chave na mão: fazem tudo, desde o projecto ao cimento. Vem tudo da China, inclusivamente o financiamento. Não precisam de nós para nada, só precisam de alguns tradutores. Com os brasileiros é parecido. Têm um engajamento muito grande com os angolanos, que nós ainda não conseguimos. Isso é fruto de o Brasil ter sido o primeiro país a reconhecer Angola, ao contrário de nós. E o Brasil não é um país, é um continente. Os brasileiros têm empresas muito grandes, com uma dimensão a que não estamos habituados. Têm linhas de crédito que nós não temos. O Brasil tem uma cultura de projecto completamente diferente da nossa. O arquitecto e o engenheiro fazem apenas estudos prévios. Os projectos de execução são feitos pelos empreiteiros, que por sua vez contratam outros arquitectos. Enquanto os chineses financiam a obra pública, os brasileiros conquistam trabalho directamente nos ministérios e nos governos provinciais. Pela habilidade que têm em fazer negócios, associam-se a quem está mais bem implantado no terreno. Actualmente, quem tem melhor implantação em Angola é uma empresa libanesa, a Dar Al-Handasah, que domina toda a consultoria angolana, com cerca de 11 000 pessoas em 43 países. Muitos negócios envolvem empresas construtoras brasileiras com a Dar. Mas não vale a pena entrarmos nesta ‘liga dos campeões’. Nós estamos envolvidos em trabalhos mais pequenos, apropriados à nossa dimensão, aos quais somos capazes de dar resposta. Temos de marcar pela diferença, fazer o que os outros não fazem. Em Luanda, há exemplos de má arquitectura que não respeita o ambiente, nem o clima, nem o modo de viver das populações. NT – Sentimos que os clientes forçam um edifício como os que vêem em Paris ou em Frankfurt. Querem importar modelos. Nós explicamos que, em Luanda, uma fachada de vidro virada a poente ou a nascente não é a melhor solução, mas a reacção nem sempre é a melhor. Querem importar modelos. RR – O ar condicionado é um cancro naqueles países. Não ligam nenhuma aos projectos e resolvem tudo com ar condicionado. Têm estereótipos, e é muito difícil convencê-los de outras soluções mais ajustadas. *** Internacionalização DQ – Foi mais fácil internacionalizar-me em Angola do que internacionalizar-me em Lisboa. Isto porque sou oriundo de Angola e é lá que tenho raízes e conhecimentos. Em Lisboa, é dificílimo arranjar trabalho. Gostaria de sublinhar um princípio: internacionalizar uma empresa é ir para ficar, não é ir e vir. Ir e vir é exportar. Eu posso ir a Moçambique e volto. Já lá fui fazer um trabalho, mas não consegui ficar. Já fui a Cabo Verde fazer outro trabalho. Ficou feito, mas não tenho lá raízes, não tenho massa crítica para poder ficar lá. Isto é que é difícil. Para ir e ficar é necessário ter raízes, conhecimentos, estar entrosado com o mercado. É evidente que ter currículo e experiência é importante. Mas mais importante é ter predisposição para. RR – Chegas a Luanda ou a Maputo e vês exemplos extraordinários de uma arquitectura muito bem feita, adaptada ao clima, sem ar condicionado. Hoje isso desapareceu, porque todos querem fazer edifícios espelhados como os que vêem em Nova Iorque e Xangai. Isso é uma catástrofe, porque destrói a harmonia que as cidades tinham e traz novos problemas. J-A –Mas convém dizer que há muitas empresas portuguesas envolvidas nessa descaracterização e destruição. NT – Isso é o que lhes traz dinheiro… infelizmente. RR – Temos de ter consciência de que não vamos salvar o mundo. Em última análise, se nos disserem “É isto que vão fazer”, nós fazemos da melhor forma que sabemos. NT – O que também acontece é que os nossos clientes angolanos e brasileiros vão a Miami e depois querem fazer coisas daquelas, porque têm dinheiro e pagam. O arquitecto, por muita força que tenha, não vai conseguir vergar o cliente porque, no final, é o cliente que paga. Não há volta a dar. O Dubai e Abu Dhabi são paradigmas desta situação. Se eles conseguiram, em Angola também se vai conseguir. J-A – Mas qual o horizonte de longevidade dessas aspirações? Quando estes mercados abrandarem, quando tudo ‘estourar’, o que fazer? RR – Vamos para outro lugar, ou voltamos para cá. Não podemos dramatizar, os ingleses fazem isto há anos. Tudo isto aconteceu com alguma urgência, tudo se precipitou. Dá a ideia de uma catástrofe, só que é um processo normal. Estamos apenas a aproveitar as oportunidades. Trabalhar em Moçambique alivia-me. Estava completamente saturado da burocracia e da legislação. Aliás, nem quero ouvir falar de projectos em Portugal. Apesar da lentidão dos processos – e lá algumas coisas são lentas –, o processo é possível. Cá, as coisas chegaram a um ponto em que é impossível trabalhar. Por exemplo, quando falamos com o técnico de uma câmara, ele nem está a ouvir, nem quer perceber o que estamos a dizer. Uma coisa é o mundo dele, outra é o nosso. Cá, a legislação tornou-se completamente absurda. DQ – A minha geração teve uma oportunidade irrepetível: a possibilidade de tirar um curso e exercer a profissão em Portugal, o país onde nos formámos. Hoje, somos uma geração com experiência, que deixou de ter oportunidades cá dentro. Mas, ao ir para fora não podemos levar estereótipos de um modelo de arquitectura traçado pelo Siza ou pelo Souto de Moura, pensando que é vendável em Angola. Se calhar é mais vendável na Suíça do que em Angola. Em Angola, as pessoas não aderem. Olham para a nossa arquitectura aqui da Escola do Porto e não se identificam com ela. RR – Mas o Porto não é só o Siza e o Souto de Moura. Há muitas arquitecturas aqui no Porto. Temos de ter o bom senso de perceber que não há receitas. Não há aqui, tal como não há em Angola ou Moçambique. DQ – Penso que a linha de conduta correcta não é impor aquilo que aprendemos nos bancos da escola, nem seguir o que nos estão a trazer da China, do Brasil, da Alemanha, do Dubai. Devemos estudar e desenvolver o que de bom foi feito no passado. Tivemos excelentes arquitectos portugueses a trabalhar em Angola, na primeira linha do que se fazia na altura. Portanto, precisamos de uma nova geração de arquitectos a exercer a profissão lá. RR – Estamos a trabalhar em países completamente diferentes dos nossos. A arquitectura moderna que se fez em Moçambique e Angola tinha um carácter internacional e hoje é tida como perfeitamente integrada. É por aí que poderemos conseguir mercado. *** Legislação J-A – Acham que deveria haver uma estratégia concertada com instituições como o Ministério da Economia ou a Ordem dos Arquitectos? NT – O português é uma das línguas mais faladas no mundo. Permite-nos actuar no Brasil, Angola, Moçambique, Timor, etc. Nesse sentido, a Ordem dos Arquitectos pode ter um papel fundamental, nomeadamente estabelecendo protocolos de reconhecimento da profissão. É importante que possamos exercer nesses países. Obviamente, segundo algumas regras estabelecidas pelas Ordens locais. Com tanta necessidade de projectos e de ordenamento do território, a nossa Ordem poderia ter o papel de garantir que os arquitectos em que o país investiu tenham possibilidade de exercer a profissão lá fora. DQ – Há uma vantagem nos países de língua portuguesa que tem a ver com a linguagem técnica do projecto. Noutros países, a base é o inglês técnico. NT – E na legislação. Em Angola, o Regulamento Geral de Edificações Urbanas [RGEU] é muito idêntico ao nosso, tal como grande parte da legislação. Ou seja, quem consegue dominar a legislação de um projecto em Portugal vai certamente dominar a de Angola. J-A – E em Moçambique? RR – É igual. Temos é de os avisar, para evitar que se repita o que aconteceu aqui. É o melhor serviço que podemos prestar. A Ordem já devia ter resolvido o problema do reconhecimento do grau académico dos arquitectos portugueses. Não sei o que a Ordem faz, nem o que deixa de fazer, mas se fizesse isso, quanto a mim, não precisava de fazer mais nada. DQ – Há um aspecto que merece reflexão. Em Angola, só há 500 arquitectos inscritos na Ordem. Mas Angola ainda não tem as restrições de responsabilidade que temos aqui. Os engenheiros continuam a poder assinar projectos, o que torna o mercado bastante perverso. Que eu saiba, há dois termos de responsabilidade necessários: um no governo provincial – que serve para todos os projectos de arquitectura e de engenharia civil – e uma assinatura para o projecto eléctrico na Empresa de Distribuição de Electricidade. Fora esses, não há mais termos de responsabilidade. Temos de perceber que, neste momento, Angola está a ser assolada por uma invasão de técnicos de todo o mundo. O reconhecimento de técnicos portugueses é um problema de natureza semelhante ao reconhecimento de um técnico chinês ou brasileiro. Posso dar o meu testemunho porque estou inscrito na Ordem dos Engenheiros de Angola. Tendo feito lá todo o ensino secundário e ainda o primeiro ano da universidade, tive de pedir uma certidão com todas as disciplinas na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, para ser reconhecido pela Universidade Agostinho Neto. Só depois de ter essa equivalência é que a Ordem me aceitou. *** Balanço J-A – Além de levarem um know-how, uma cultura arquitectónica competente na adaptação ao clima e ao lugar, o que trazem dessas experiências? Da aprendizagem que fazem ao trabalhar além-mar, o que poderia ser útil saber para quem trabalha em Portugal? RR – Acho que trazemos uma liberdade criativa muito maior, porque aqui, por todas as razões e mais alguma, pela nossa formação, temos dificuldade em sair de uma certa rigidez. Em 1974, Portugal era um país atrasadíssimo relativamente a Angola e a Moçambique, a todos os níveis. Essa liberdade, esse horizonte, ainda se sente muito hoje em Luanda e em Maputo. Nós cá estamos um bocadinho presos, não só por causa da legislação… Lá tudo é mais descomprometido, mais livre. Sou suspeito, porque gosto muito de estar em Moçambique, como vocês devem gostar de estar em Angola. A frescura que lá se vive era importante chegar cá, num momento em que estamos completamente assoberbados por normas e regras. Aqui só se consegue fechar coisas, lá abre-se. Aqui não se começa nada. NT –Temos aprendido a ter muita paciência, o que nos ajudou a gerir muito bem urgências e emergências. Saber esperar deu-nos maturidade. Nos projectos em Angola, faz-se determinada fase com muita urgência. Depois, as coisas abrandam e, de repente, há de novo muita pressa para a execução. Aprendemos a jogar com o stress, pausadamente. DQ – O tempo é muito diferente, muito diferente. NT – Exactamente. Ter paciência, saber esperar pela oportunidade certa para fazer as coisas bem feitas. Essa é uma característica que temos adquirido. DQ – Creio que a prática da profissão lá tem de ser encarada de um modo diferente de como é encarada cá. Um factor muito importante é fomentar o conhecimento pessoal, isso é determinante no sucesso da internacionalização. E tem de haver uma atitude proactiva, em que damos ideias e promovemos soluções. Usamos aquilo que para nós é intuitivo, que com alguma experiência torna a solução óbvia. Não nos adianta ter uma ideia brilhante e muita experiência se não conhecermos a pessoa certa a quem devemos apresentar essa ideia. Se conseguirmos este trio, conseguimos vencer. Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 48-57. |
Conversa conduzida por Paulo Moreira e Pedro Baía. Porto, 19 de Novembro de 2012. Registo e vídeo por Tiago Casanova.
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