ALEXANDRA AREIA

Souto de Moura no Cinema

O filme ‘Reconversão’ de Thom Andersen

Reconversão é um filme sobre granito. O filme começa com um grande bloco a ser extraído de uma pedreira e com todo o seu peso a ser pousado por um caterpillar no reboque de um camião. Enquanto o bloco é cortado e transformado em placas, uma voz-off explica-nos, com o seu sotaque americano, que “Portugal is two countries, two civilizations: in the south, clay; in the north, granite”. Esta afirmação serve para pôr o espectador perante o argumento central do filme: a arquitectura de Souto de Moura funda-se como uma parede de granito. Pesquisador obsessivo, Thom Andersen quer saber porque é assim que Souto de Moura constrói a sua arquitectura, e Reconversão é a materialização cinematográfica dessa investigação.

O filme é uma viagem de 65 minutos por 17 obras e projectos, segundo uma selecção que recupera muitas obras e casas do seu percurso inicial, particularmente habitações privadas, como por exemplo as casas no Gerês, Baião, Moledo do Minho ou na rua de Nevogilde. A narração que acompanha o filme cita, por sistema, palavras de Souto de Moura, e o realizador procura traduzir nas imagens ideias que as palavras contêm. Perante o confronto entre os dizeres do arquitecto e o resultado da observação directa de um estrangeiro curioso e atento, assistir ao filme permite acompanhar um diálogo profícuo entre autor e observador.

Em Reconversão, sente-se a passagem do tempo sobre a arquitectura de Souto Moura. Thom Andersen recorre a uma técnica que refere como “landscape animation” – especialidade do seu director de fotografia, Peter Bo Rappmund – para, em momentos específicos, fazer acelerar a realidade e testar a resistência dos edifícios à inconstância do ambiente e à imprevisibilidade do seu próprio uso. Nesses momentos, a imagem vídeo dá lugar a uma sequência de imagens fotográficas, captadas em diferentes instantes e montadas segundo uma estrutura temporal precisa, construindo uma única imagem fixa subtilmente animada pelas mais pequenas alterações de luz e movimento. E, como se a aceleração do tempo tivesse também afectado a própria técnica de filmagem, esta imagem individual é-nos apresentada carregada de grão e de cores saturadas, uma reminiscência evocativa da materialidade confortável do filme em película.

Thom Andersen diz ter aversão às fotografias que aparecem nos livros e revistas de arquitectura; refere-se a elas como “house porn” porque captam um momento sem tempo, em que a obra é apresentada vazia e sem qualquer marca de ocupação. Ao filmar a arquitectura de Souto de Moura, Andersen recria enquadramentos das imagens abstractas que viu em livros e confronta-as com a dimensão física e habitada dos espaços representados. Assim, tal como a técnica fotográfica corteja a materialidade do cinema em película, a imagem deste filme procura nestas obras a reverberação dos materiais e texturas que tanto as caracterizam.

A ideia de ruína e a passagem do tempo estão sempre latentes no filme, são factos que funcionam como pré-existências que o realizador respeita e procura interpretar. Uma das obras visitadas é a reconversão de uma pequena ruína no Gerês, um projecto de 1980-82 que ficou inacabado e foi abandonado, uma ruína que, por força das circunstâncias, se transformou numa nova ruína. A equipa de filmagem perdeu-se em busca da casa, que não foi fácil encontrar. Andersen tinha indicações de que se tratava de uma obra cuja visita era imprescindível, mas, descoberta a pequenez e o estado de desmazelo em que ela se encontrava, interrogou-se sobre essa condição. O filme lança a pergunta: “Why had Souto Moura’s office insisted we visit it? Was it a practical joke? Or a test of our seriousness?”

Em contrapartida, Andersen diz-nos ter sido o escritório de Souto de Moura a não entender por que razão ele insistiu em visitar as casas aburguesadas, sem granito e sem ruínas, da Avenida da Boavista. Instigado por um depoimento onde o arquitecto evocava os becos de Los Angeles para explicar aquele projecto, Andersen justifica-se com o humor acutilante que percorre todo o filme: “Since I grew up in Los Angeles and I love alleys, that was enough for me.” Durante o filme, somos várias vezes surpreendidos com pequenos desvios à narrativa central, em que Andersen nos expõe as suas inquietações perante a actualidade portuguesa. Com a curiosidade natural de um estrangeiro em visita ao país, Andersen fala-nos do SAAL e do bairro de São Vítor, projecto em que Souto de Moura colaborava com Álvaro Siza, comenta a demolição do Aleixo e faz-nos ouvir Portugal na CEE, uma música dos GNR que contemporiza as primeiras obras do arquitecto e ecoa a enumeração dos materiais importados para a construção de uma casa que se queria “portuguesa” e de baixo custo, em Baião.

O filme conclui-se com a visita da equipa de filmagem ao escritório de Souto de Moura, onde realizador e arquitecto conversam. Falam sobre destruição e criação, e Souto de Moura explica como detesta a ideia romântica de ruína: “Adoro ruínas como adoro animais, porque se movem e resistem, têm energia.” Diz-nos que, nos seus projectos, procura apenas acelerar a história, acelerando a degradação das obras. E diz fazê-lo com obsessão, porque não concebe outra possibilidade de fazer arquitectura. No final, ouvimo-lo comentar: “sou um exagerado”.

Reconversão abre possibilidades para uma compreensão mais lata da arquitectura de Souto de Moura, porque, além de oferecer um registo audiovisual sedutor, consegue transmitir o “estado febril” em que as suas obras são projectadas e construídas. A ideia de ruína é uma obsessão partilhada por Thom Andersen e, tal como o granito nas obras do arquitecto, é explorada ao limite da sua definição e perseguida com uma boa dose de exagero, deixando-se levar pelo que esta lhe sugere. Em dado momento do filme, uma citação de Souto de Moura sobre a casa em Moledo do Minho explica-nos que “muitas vezes a preparação do tema é o próprio projecto”. Reconversão usa este nível de transparência – Thom Andersen desmonta o método do arquitecto com uma franqueza desinteressada – e, provavelmente, essa é a sua melhor homenagem à obra de Eduardo Souto de Moura.

 

Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 62-65.

Para celebrar os 20 anos de existência, o Festival Curtas de Vila do Conde convidou
quatro cineastas estrangeiros para realizar filmes cuja temática incidisse
sobre a região Norte de Portugal. Thom Andersen, um realizador de Los Angeles
que sonhava ser arquitecto e que vive numa casa desenhada por Rudolf Schindler,
escolheu a obra de Eduardo Souto de Moura para construir o argumento do seu
filme. A produção do filme foi portuguesa e da responsabilidade de Dario
Oliveira das Curtas Metragens CRL.

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Cineasta norte-americano estabelecido em Los Angeles, Thom Andersen reparte a sua
actividade cinematográfica entre a realização, a crítica e uma carreira de 25
anos no ensino de teoria e história do cinema no CalArts (California Institute
of the Arts). A sua filmografia é curta mas apoia-se em títulos que reflectem
uma extensa investigação em torno do próprio cinema e da forma como este altera
a percepção da realidade. Los Angeles
Plays Itself
, de 2003, consiste numa montagem detalhada de fragmentos de
múltiplos filmes que revelam um retrato visual distorcido e equivocado da
cidade, perpetuamente alimentado pela indústria cinematográfica. Get Out of the Car, de 2011, conquistou
o prémio de melhor documentário na 19.ª edição do Curtas de Vila do Conde, foi
uma reacção ao filme anterior e procura ser uma “sinfonia urbana” onde são
capturados lugares e sons reais, misturados com elementos esquecidos ou
abandonados da história e da cultura de Los Angeles, cidade pela qual Thom
Andersen se sente profundamente atraído.

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Ficha Técnica: RECONVERSÃO / Portugal, 2012, DOC, HD, Cor, 65′ / Realizador: Thom Andersen / Produtor: Dario Oliveira, Curtas Metragens CRL / Argumento: Thom Andersen / Fotografia: Peter Bo Rappmund / Montagem: Adam R. Levine, Christine Chang / Música: GNR / Som: Christine Chang / Director de produção: Raquel da Silva