NUNO ALMEIDA

AQUI NÃO HÁ ORDEM, SÓ ORGANIZAÇÃO

Nas últimas décadas, o êxito da arquitectura holandesa não se ficou a dever (apenas) ao talento dos arquitectos holandeses. Nos anos de 1990, o investimento do Estado holandês na promoção da arquitectura foi amplo e estruturado, não se limitando à valorização de obras singulares que beneficiam escritórios de uma certa dimensão e/ou nome. Por exemplo, o programa VINEX promoveu mais de uma centena de projectos de habitação de grande escala, que beneficiaram um grande número de escritórios de diferente dimensão, prática e experiência. Em paralelo, no final dos anos de 1980, a criação do Instituto Holandês de Arquitectura (NAI) instigou o debate cultural sobre arquitectura, seguindo uma estratégia de programação orientada para o presente e para o futuro.

A prática da arquitectura holandesa foi muito influenciada também por um significativo apoio estatal a jovens (e não só) escritórios, através de subsídios para estudos mais ou menos especulativos ou teóricos que contribuíram para o debate e para o aumento da produção de conteúdos actuais. Esses conteúdos fizeram florescer uma indústria de publicações com uma orientação internacional decisiva para a divulgação da arquitectura holandesa. Esta visibilidade, em conjunto com a livre circulação europeia e a abertura holandesa no uso da língua inglesa, atraiu uma quantidade invulgar de arquitectos estrangeiros, que, por sua vez, trouxeram à Holanda novas ideias e dinamismo no trabalho. Apesar de, nos últimos anos, muitas destas políticas e estratégias terem terminado, regredido ou sido canceladas, a arquitectura holandesa beneficia ainda desses anos de organização estruturada do contexto de trabalho.

Extraordinariamente, o êxito da arquitectura holandesa aconteceu sem que o exercício da profissão fosse exclusivo dos arquitectos. Na Holanda, qualquer pessoa pode “assinar” um projecto, desde que se dê ao trabalho de perceber como deve organizar um processo. Apenas o título de arquitecto, e não a sua actividade, é protegido. Isto significa que uma pessoa, mesmo com um diploma de arquitectura, não se pode intitular “arquitecto” sem estar registada no gabinete de registo, o Bureau Architectenregister, que regista também os profissionais de planeamento urbano, o paisagismo e a arquitectura de interiores. Este registo – cujo conselho de administração é nomeado pelo governo – é de inscrição livre para quem tenha um diploma (universitário ou não) em arquitectura. No entanto, seguindo o princípio da inevitável propagação de maus exemplos, a Holanda prepara-se para exigir dois anos de experiência profissional a quem se queira inscrever no registo. O sistema de verificação destes dois anos envolve tutores, módulos de formação e expedientes afins. Desconhece-se ainda o efeito desta medida no aumento das inscrições, mas o facto de o registo não ser obrigatório para a prática profissional não deverá resultar num aumento anormal e súbito do número de “arquitectos”.

É também pouco provável que, na Holanda, a exigência de experiência profissional tenha um impacto negativo no mercado de trabalho. As relações laborais já são maioritariamente regidas por contratos (com termo até um total de quatro anos, seguidos de contrato sem termo) sujeitos, por seu turno, a um contrato colectivo de trabalho (CAO) entre entidades empregadoras e assalariados. Este contrato colectivo é acordado no âmbito da SFA (traduzindo livremente: Fundação de Escritórios de Arquitectura), composta por representantes da BNA (Associação de Arquitectos Holandeses), e dos sindicatos. A BNA é uma associação de arquitectos e empresas de arquitectura (sem inscrição obrigatória) reconhecida para representar as entidades empregadoras. A representação dos arquitectos que trabalham por conta de outrem faz-se através das centrais sindicais. Uma vez que os arquitectos estão incluídos no sector da prestação de serviços, e devido à dimensão das centrais sindicais, os representantes dos sindicatos nestas negociações não são necessariamente arquitectos. Apesar disso, o contrato colectivo é uma referência para todos os arquitectos e empresas de arquitectura, independentemente de estarem inscritos na BNA ou nos sindicatos, ou, até, no Bureau Architectenregister.

O contrato colectivo da SFA regula o enquadramento legal, os direitos laborais (férias, pensões, etc.) e económicos (tabelas salariais) das relações laborais, e os contratos são ajustados e renegociados anualmente. A SFA publica também o Manual de Funções dos escritórios de arquitectura. Este manual tipifica várias famílias de funções existentes num escritório (desde arquitectos até desenhadores, passando por funcionários administrativos), dividindo as funções em várias categorias e descrevendo as respectivas actividades, as competências, as responsabilidades, etc. Cada categoria, combinada com anos de experiência, é identificada nas tabelas salariais. Embora sujeito a interpretações, este manual é uma excelente base de negociação e clarificação das expectativas de ambas as partes do contrato de trabalho. A contratação a “recibos verdes” ( freelancer) é desincentivada através de uma política de impostos agressiva e de regras que proíbem, por exemplo, que um freelancer tenha menos de três clientes por ano.

É irónico que, sem a aparente vantagem, que existe em Portugal, da obrigatoriedade de inscrição de todos os profissionais num organismo agregador, potencialmente capaz de representar toda a classe, as relações entre arquitectos no mercado laboral estejam bem definidas e protejam tanto os arquitectos empregadores como os empregados. A clarificação das relações laborais tem a vantagem adicional de regular, indirectamente, a capacidade competitiva e a viabilidade económica das empresas de arquitectura.

Por outro lado, numa curiosa inversão do caso português, a BNA – representando apenas parte dos arquitectos (e empresas) com actividade própria e uma minoria dos profissionais da arquitectura – não se detém na discussão infindável, e inevitavelmente gorada, da restrição do acesso à profissão e dos seus “actos próprios”. A sua missão é abrangente e visa promover as vantagens da utilização de arquitectos, apoiar a actividade através da publicação de contratos cliente-arquitecto de referência, proporcionar educação contínua dos seus membros e participar nas negociações laborais e salariais que afectam as empresas de arquitectura.

Uma Ordem abrangente e representativa poderia posicionar-se como interlocutor indispensável em todos os aspectos relacionados com a prática profissional, cobrindo tanto a vertente empresarial (procedimentos de encomenda e contratação, requisitos administrativos e de licenciamento de obras, sistemas de seguros, regulamentos de construção, implementação de standards e inovações tecnológicas, regulação dos honorários e apoio à internacionalização), como a vertente laboral (definição de papéis e responsabilidades, publicação de contratos de trabalho e tabelas salariais, planos de carreira), de modo a encontrar soluções inclusivas para todos os grupos de interesse debaixo de um só tecto.

A situação holandesa não é, nem de longe nem de perto, uma situação perfeita – tendo sido, por exemplo, abandonada a regulação do cálculo de honorários, que, todavia, continua a ser usada oficiosamente como referência. Contudo, sem Ordem, mas com organização, a Holanda conseguiu criar um mercado de trabalho relativamente justo e uma cultura arquitectónica dinâmica, vibrante e internacional.

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 422 – 423.

Correspondente em Amesterdão

 

LINKS
Bureau Architectenregister:
www.architectenregister.nl
Collectieve Arbeidsovereenkomst
voor Architectenbureaus (CAO):
www.sfa-architecten.nl/cao
Stichting Fonds Architectenbureaus (SFA):
www.sfa-architecten.nl
Bond van Nederlandse Architecten (BNA):
www.bna.nl
Tabelas Salariais:
www.sfa-architecten.nl/cao/cao/salaristabellen
Manual de Funções:
www.sfa-architecten.nl/functiehandboek

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A grafia deste artigo segue as normas editoriais do J-A, contra a vontade expressa do arquitecto Nuno Almeida, que assina o texto.