GABRIELA TAVARES

ARTEMOVSZK 38

Budapeste é uma cidade animada por uma intensa vida cultural. No entanto, a um observador mais atento não passará despercebida a quase total ausência de espaços de lazer à beira-rio. Esse mesmo observador concluirá, pelos muros altos que separam o Danúbio da cidade e que a defendem das invasões das águas em épocas de cheias, que tal falta se deve justamente a estas últimas, que impossibilitam qualquer projecto de contacto mais próximo e permanente com o rio. Ainda assim, a subida sazonal das águas não demove os habitantes de usufruírem do rio – nas épocas de sol e calor, são instalados à beira do Danúbio bares temporários, que habitualmente se desmontam a partir de Outubro. Uma solução alternativa é a transformação de barcos em equipamentos de apoio como cafés, restaurantes e discotecas. Deste ponto de vista, o Artemovszk 38, ou mais simplesmente A38 ou Barco, não é original. Mas a aparente banalidade do Barco pode ser enganadora. O A38 não é somente uma embarcação transformada em espaço de lazer: além de ser um símbolo ímpar da cultura em Budapeste, é também um modelo de cooperação entre promotores culturais, arquitectos e engenheiros.

O A38 é a trigésima oitava embarcação de uma frota de cargueiros fluviais soviéticos. Foi lançado à água em 1968 e percorreu mais de três milhões de quilómetros a transportar pedra no Volga, até ser abandonado num ferro-velho ucraniano. Em 2002, foi adquirido, remodelado e transportado para águas húngaras. A escolha deste modelo não foi casual – os novos proprietários escolheram-no por ser mais largo do que os cargueiros que normalmente frequentam o Danúbio, mas é também evidente a atitude de não renegar o passado socialista.

Apesar de a sua face remodelada evidenciar uma nova função, a utilização de materiais mais industriais – metais e vidro – permitiu preservar o seu carácter original. A sala de concertos, que pode acolher até 650 espectadores e por onde já passaram alguns dos grandes nomes da música portuguesa – dos Clã ao duo Mário Laginha e Bernardo Sassetti –, está meio metro abaixo do nível das águas; esta solução, combinada com uma construção do tipo “caixa dentro da caixa”, oferece um isolamento sonoro consequente com o tratamento acústico (o A38 também está equipado com um estúdio para gravações de concertos). No backstage, onde funcionava a casa das máquinas e onde foi mantido um dos corpos do motor a diesel, existe um pequeno bar para os artistas e, atrás deste, o espaço da antiga cabine da tripulação foi transformado num quarto para albergar visitas. O restaurante, situado acima deste piso semi-submerso, permite desfrutar de uma maior proximidade com o Danúbio através das suas janelas rasgadas a todo o comprimento, a cerca de meio metro acima do nível da água. No convés, um bar-esplanada convida a grandes noitadas de dança ao ar livre, com vista para Buda e para Peste. Uma inteligente distribuição e reutilização dos espaços funcionais mostra que houve respeito pelo carácter original do Barco, e atenção aos pormenores, tendo a decoração sido deixada, em grande parte, a cargo de artistas plásticos.

No entanto, o que torna o A38 um lugar único não é a sua reabilitação (exemplar sem dúvida), nem o facto de se tratar de um barco (o que por si só converte o espaço num lugar especial e diferente), mas sim a conjugação deste lugar especial, inteligentemente aproveitado, com uma programação cultural bem pensada e muito diversificada. Da música clássica ao metal, de artistas internacionalmente reconhecidos a futuros talentos, o Barco oferece uma das melhores programações culturais em Budapeste. Dito de outro modo, o A38 é um bom exemplo de simbiose espaço/ função – o mesmo evento cultural noutro lugar não teria o carisma que tem no Barco, assim como o A38 não seria o Barco se albergasse outros eventos. O empenho de todos, dos promotores aos arquitectos, dos músicos aos artistas plásticos, da tripulação ao público que o frequenta, foi capaz de transformar um simples cargueiro de pedra recuperado de um ferro-velho ucraniano num lugar ímpar e ponto fundamental da cultura contemporânea húngara.

A qualidade da programação cultural do Barco está intimamente relacionada com a vontade de independência – apesar de usufruir de alguns apoios estatais, o pouco significado que estes têm no orçamento global defende a instituição de pressões políticas. Desde o momento da aquisição do Barco, da sua remodelação e manutenção, a independência foi uma prioridade. Os proprietários preferiram ficar ligados a um crédito com condições menos vantajosas, a estarem vinculados a patrocinadores que, mais cedo ou mais tarde, poderiam exigir contrapartidas indesejadas.

Os cerca de 600 concertos por ano confirmam a programação musical como o forte do A38. Mas a literatura, o cinema, a arte, a cultura em geral, também têm o seu lugar. E a crise parece não afectar o Barco, que navega cada vez mais ao encontro de novos públicos, e com êxito tal que não tem capacidade para dar resposta a todas as solicitações. Por esta razão, e ao fim de vários anos, a expansão foi inevitável. Mesmo tendo em conta dificuldades, custos e restrições inerentes a uma embarcação – despesas com aquecimento e descargas de esgotos; regras náuticas a cumprir, que têm a mesma rigidez das de um barco em movimento; semanas de encerramento não programado devido a cheias –, não houve dúvidas: o novo espaço anexo teria igualmente de flutuar. Porquê de novo um barco? A sua tripulação, que inclui técnicos de todas as especialidades, do som à náutica, vê os barcos “como símbolo poético de liberdade, viagem, aventura e descoberta” – e, em Budapeste, este é sem dúvida o melhor lugar para estar próximo do Danúbio. Desta vez, porém, com mais experiência, os proprietários preferiram um outro género de embarcação, mais simples e com uma manutenção menos dispendiosa: uma barcaça branca e paralelepipédica, multifuncional, com uma abertura ampla e franca ao nível do rio, e que funciona também como cais de embarque para o recentemente reintroduzido transporte público fluvial, onde, ocasionalmente, desembarcam artistas vindos de outras paragens.

No início deste ano, o A38 viajou até à Eslováquia, para a sua primeira revisão em estaleiro após uma década de funcionamento, e regressou pronto para mais dez anos de boa cultura. Um exemplo a seguir noutras águas.

Este texto foi publicado no J-A 250, Mai — Ago 2014, p. 420 – 421.

Correspondente em Budapeste