A programação de arte e arquitectura de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura foi coordenada por Gabriela Vaz-Pinheiro e procurou relacionar o contexto local e regional com outros contextos. Sobretudo com contextos imateriais que nos ocupam cada vez mais a vida. Trazer arte e arquitectura para o espaço público, como nos projectos ReaKt e no conjunto de intervenções resultantes do concurso Performance Architecture comissariado por Pedro Gadanho, tinha como objectivo discutir aspectos da vida na cidade. E incluir nela e no seu quotidiano a lógica da programação, retirando-a do espaço exclusivo das instituições culturais. A Fábrica Asa, centro de parte dos eventos, participava desta informalidade. A exposição Edifícios & Vestígios, comissariada por Inês Moreira e Aneta Szylak, tirou partido do carácter industrial desse espaço para tornar presente o passado social, cultural e económico de Guimarães e do Vale do Ave. A hibridez resultante da fábrica-centro cultural serviu ainda como lugar ao Laboratório de Curadoria, um conjunto de reflexões sobre o processo em curso da própria capital cultural. Houve ainda outros espaços de cruzamentos disciplinares em Guimarães, como nas exposições Devir Menor e Missão Fotográfica: Paisagem Transgénica e a retrospectiva que permitiu um mergulho no universo Archigram.
O percurso e o campo estabelecidos por cada comissário criaram um espaço de encontro de ideias e formas, convocadas em confronto com a realidade local. Este tipo de eventos temporários serão sempre frágeis, perante uma realidade que permanece. Mas tendo insistido tanto na relevância do contexto na programação, vale a pena perceber quanto do que aconteceu vai ficar e quais as dinâmicas criadas. Se uma capital cultural é uma exterioridade que se instala no interior de uma cidade, ou se permanecem contaminações. A renovação da Praça do Toural e o conjunto urbano da Plataforma das Artes e da Criatividade são obras que cumprem uma tradição das Capitais Culturais, de deixar marcas materiais que façam perdurar o evento no tempo. Não houve em Guimarães a fúria construtora que aconteceu em Lisboa e no Porto, nem gigantismos desmedidos. Com maior ou menor êxito, o que se construiu vai sobreviver caso e sempre que os habitantes da cidade queiram. Para além da programação geral de arte e arquitectura, as exposições Ser Urbano e Modernidade Permanente revisitaram as obras de Nuno Portas e Fernando Távora, um exercício oportuno pela ligação de ambos à cidade e à região. Concluídas as actividades de Guimarães 2012, ficam algumas notas de visita.
Praça do Toural
Uma das obras mais marcantes é a renovação da Praça do Toural, projecto coordenado por Maria Manuel Oliveira e integrado numa requalificação urbana mais abrangente. Esta praça histórica estava ordenada segundo uma hierarquia rígida entre edifícios de carácter e volumetrias diferentes, fileiras de árvores, pavimentos e espaços ajardinados. Os bancos periféricos determinavam os lugares de observação de uma acção central, lugar de passeio e convívio social. Este espaço de encontro fazia-se sobre o eixo longitudinal, gerando os edifícios na periferia situações diversas em cada uma das suas frentes: volumetrias significativas num dos topos, edificação contínua e comércio numa das frentes laterais, e alinhamentos, funções e carácter mais irregulares noutra. A única coisa incoerente nesta composição era a própria praça, âncora de uma ordem urbana que nunca chegou a acontecer. O Toural era um espaço de passeio com uma função urbana que já não existe, das “voltas higiénicas” que a vida urbana substituiu pelo encontro no interior dos cafés e de outros estabelecimentos. A acção já não está no centro, mas na periferia. Com as suas lojas, cafés e bares, é ela que, agora, faz viver o resto da cidade. A intervenção construída compreende esse uso contemporâneo e fragmentado do espaço público, e o seu paradoxo de coexistir com um universo cultural e estético partilhado a uma escala global. O projecto preocupa-se com a delimitação rigorosa da intervenção e com a hierarquia do conjunto edificado que não se alterou com o passeio queirosiano, com a cidade que não foi. O Toural retomou a forma de um terreiro onde as circulações, informais, resultam da atracção de pólos específicos (um restaurante, um café ou bar, uma loja, um edifício institucional). O chão é um plano contínuo e sem obstáculos, onde alguns bancos assinalam referências possíveis. O seu desenho, que reproduz um excerto da planta da cidade, é, ele próprio, inscrição abstracta de uma textura urbana que já não existe. Em contraponto, uma guarda em ferro forjado recorda os limites dos jardins românticos que definiam um interior por oposição ao exterior urbano insalubre e opressivo. A renovação da Praça do Toural toma o chão como infra-estrutura extensível, pronta a invadir o espaço público das cidades, absorvendo as suas topografias e os seus lugares num “monumento contínuo”.
Plataforma das Artes
A Plataforma das Artes e da Criatividade, projectada pelo atelier Pitágoras, faz sentido como um desejo. Neste caso, desejo de um programa, de um edifício simbólico, de uma oportunidade, e das formas e das imagens que a contemporaneidade vai propondo. Ocupa parte do antigo mercado e articula um conjunto de edifícios em torno de uma praça interior, onde se reúnem o Centro de Artes José Guimarães e os restantes edifícios com funções ligadas às indústrias criativas. Esta designação, muito em voga, identifica sectores da cultura que se sustentem e sejam lucrativos. E que, por isso, se afastem dos apoios do Estado e se libertem do fantasma da “subsídio-dependência”. Mesmo que neste caso seja o Estado o seu impulsionador. Dependem, como as outras indústrias, da sedução que leva uma ideia a surgir em nós. É sobre o desejo, então, este projecto. No meio da praça interior, o edifício apresenta uma composição abstracta de movimentos volumétricos em avanço e recuo, que procura animar e dominar o espaço público. Sobre uma rua lateral, o edifício emudece, numa empena cega que não produz qualquer relação funcional com cidade. Na praça, percebe-se o trabalho de revestimento e de animação de cor e da luz que as fachadas emitem. Não tanto como formas de marcação de orientação ou carácter do edifício, mas como vibração essencialmente óptica. O edifício vive de reluzir, seja o brilho do latão do revestimento à luz diurna, sejam as cores cambiantes da luz eléctrica no espaço da praça quando a noite cai. O esforço dedicado à pele do edifício suplanta o que foi aplicado no resto do projecto. No interior, por exemplo, o espaço desenrola-se num contínuo sem variações, sem ser neutro, porque é caracterizado, e descaracterizado ao procurar estabelecer uma neutralidade, se é possível o paradoxo. Estamos no território da “pele frágil”, para usar uma expressão de Iñaki Ábalos e Juan Herreros, que promove uma arquitectura epidérmica e intensa por oposição a uma outra, profunda e essencialista, de que se quer afastar. A mediatização do edifício mostra que há um universo de formas e imagens a que acedeu e do qual passou a fazer parte. Mostra, também, quanto há a discutir sobre o que a arquitectura realmente constrói na contemporaneidade.
Ser Urbano
A exposição Ser Urbano, comissariada por Nuno Grande, tem vários níveis de densidade e possíveis zooms de observação (para usar um mecanismo de linguagem caro ao próprio Nuno Portas). Em primeiro lugar apresenta-se o corpo multiforme de Nuno Portas, de crítico de cinema a crítico de arquitectura, de arquitecto a urbanista, de político a activista. Esta pulverização não é frívola nem esquizofrénica, é empenhada e lógica. Portas é um arquitecto crítico e inquieto que se entusiasma pela possibilidade transformadora do seu ofício e que reconhece os limites do (seu) ofício, ao compreender que as condições para a arquitectura são em boa parte geradas antes de a arquitectura entrar em jogo. É uma personagem perturbadora, fora do seu lugar. É um arquitecto que faz crítica de arquitectura num país sem tradição crítica séria, é um lisboeta no Porto e um portuense em Lisboa, é um arquitecto entre urbanistas e engenheiros e um urbanista que trabalha com engenheiros entre arquitectos, é um político na arquitectura e um arquitecto entre advogados e economistas que são políticos, é um estrangeirado em Portugal e um português no estrangeiro, um académico num curso prático e um pragmático entre académicos. Não há sítio onde esteja sem desconforto. A exposição mostra bem as fases e os conflitos da sua vida, e tem a capacidade generosa de oferecer a quem a visita a possibilidade de descobrir o tempo e a profundidade certos para imergir por entre os desenhos, as maquetas, os inúmeros documentos que a polvilham (numa inteligente montagem expositiva do Studio Andrew Howard). É uma exposição despudorada em que o próprio não se coibiu de estar presente nas visitas guiadas ao fundo de si próprio. É mais comunicativa do que sedutora, da mesma forma que a obra de Nuno Portas é mais empenhada do que eficaz. Portas tem a capacidade de deslizar entre lugares estáveis e, no limite, entender que o lugar da arquitectura é tanto de quem a vive e habita como de quem a projecta, sempre dentro de um sistema social, cultural e profissional. Em condições complexas, vida complexa.
Modernidade Permanente
Ao comparar a exposição Ser Urbano com Modernidade Permanente, dedicada a Fernando Távora, deparamos com duas figuras marcantes, próximas e, no entanto, tão divergentes no que foi a arquitectura no pós-guerra em Portugal. Portas e Távora são lugares e entendimentos diversos desse campo ainda indefinido a que se chama Escola do Porto, ainda que esses lugares não sejam hoje tão evidentes. Da síntese entre tradição e modernidade de Távora resta pouco; do empenho da arquitectura no campo das decisões que conformam o território em Portas, quase nada. Como pólos opostos, estas duas práticas recordam a imagem de Walter Benjamin quando aproxima a prática do operador de câmara à do cirurgião, e a do pintor à do mágico. O mágico põe a sua mão sobre o paciente, tocando-o ainda que dele se mantenha distante – actua pela sua autoridade. O cirurgião manipula o interior do paciente mas nunca de forma íntima – fá-lo por meio de uma operação. “O mágico e o cirurgião comportam-se como o pintor e o operador. O pintor observa no seu trabalho uma distância natural em relação à realidade do seu objecto; o operador, pelo contrário, penetra profundamente nas malhas da realidade dada. As imagens obtidas por ambos são totalmente diferentes. A do pintor é um todo, a do operador compõe-se de múltiplos fragmentos que voltam a reunir-se de acordo com uma lei nova.”
A um Távora-pintor-mágico-arquitecto dedica-se uma exposição e uma exclusiva sessão de conferências que nos recorda uma personagem em harmonia de contrastes, um Távora compositor: arquitecto moderno e arquitecto de tradições, aristocrata e socializante, professor emérito e tocador íntimo de consciências, viajante ilustrado e bairrista empedernido, frequentador de centros sociais e frequentador de salões, protector e agressivo. Se em Portas quisemos ver a vontade de mudar e de comunicar para sobreviver, em Távora percebemos a permanência e a empatia íntima como forma de sobreviver. Ao Portas-operador-de-câmara-cirurgião-arquitecto-cidadão contrapõe-se um Távora distante, empático e senhor de um estranho poder efabulador. Entre ambos, personagens complexas como já não as há, um panorama da arquitectura portuguesa em construção.
Este artigo foi publicado no J-A 246, Jan — Abr 2013, p. 72-75.
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Renovação Urbana da Praça do Toural, 2009-2012 / Arquitectura: CE-EAUM – Maria Manuel Oliveira / Colaboradores: João Rosmaninho DS, Sofia Parente, André Delgado / Arquitectura Paisagista: Maria João Cabral, Daniel Monteiro (estudo prévio) / Projecto de Arte Pública: Ana Jotta / Construtor: Alberto Couto Alves, S.A.
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O Ser Urbano: Nos Caminhos de Nuno Portas / Curador: Nuno Grande / Design de exposição: Studio Andrew Howard / Artista em residência: Carlos Lobo / Produção e montagem da exposição: Sign / Fábrica Asa, 10 de Março a 20 de Maio de 2012
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Plataforma das Artes e da Criatividade / Arquitectura: Pitágoras Arquitectos, Fernando Seara de Sá, Raul Roque Figueiredo, Alexandre Coelho Lima, Manuel Luís Vilhena Roque / Construtor: Casais – Engenharia e Construção, S.A.
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Fernando Távora: Modernidade Permanente / Coordenador: Álvaro Siza / Comissário da exposição: José António Bandeirinha / Comissário das conferências: Alexandre Alves Costa / Comissários adjuntos: Gonçalo Canto Moniz, Carlos Martins / Projecto Expositivo: João Mendes Ribeiro com Catarina Fortuna e Joana Brandão / Projecto Gráfico: FBA / Produção: Associação Casa da Arquitectura / Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, 17 de Novembro a 15 de Fevereiro de 2013
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