Os arquitectos, o património e a participação.
Notas a propósito da iniciativa Terra Amada
Num momento em que se debatem os limites de actuação dos arquitectos e em que proliferam, com mais ou menos reverberação mediática, exemplos de “práticas espaciais” a reboque dos eventos culturais das grandes capitais europeias, a iniciativa Terra Amada – que teve lugar no último Verão em Covas do Monte, próximo de Lafões – suscita um leque de questões que permitem alimentar o debate, escapando ao sobreaquecimento gerado pelos holofotes que iluminam a arquitectura hype.
Terra Amada é um projecto extracurricular criado pelo Curso de Arquitectura da Universidade Católica de Viseu. O seu objectivo é promover acções de voluntariado para intervenção no património rural. Centrando a actividade num curto espaço de tempo com a realização do que chamam um “estaleiro-escola”, alimentado com o trabalho voluntário de alunos de diferentes cursos de arquitectura, portugueses e estrangeiros, a iniciativa visa a conservação e a reabilitação de construções públicas e privadas. Os materiais de construção, assim como alguns serviços especializados, são oferecidos em forma de apoios ou patrocínios por várias empresas de materiais e construção e por outras instituições.
A palavra “iniciativa” caracteriza bem o modo de operar da Terra Amada. A identificação de um problema, a sua discussão com os agentes locais, a elaboração de projectos de arquitectura, a preparação da obra, a angariação de meios materiais e até o envolvimento físico na construção processam-se por moto próprio e não como resposta a uma encomenda. Por este modo de actuar, envolvendo o trabalho e apoio voluntário e a comunidade local, diríamos que se trata de um caso de “arquitectura participativa”, o que por si não constitui uma novidade. O que distingue este caso de outros será o facto de a iniciativa ser promovida por um curso de arquitectura e por se tratar de trabalhos de intervenção num património ambíguo.
PRESERVAR O QUÊ?
A experiência-piloto da Terra Amada durou dez dias, no passado mês de Agosto, e teve lugar na aldeia de Covas do Monte. Quem visita uma aldeia dita “preservada” espera encontrar um conjunto de casas com uma certa coerência construtiva, com materiais locais, dispostas ao longo de ruas estreitas e tortuosas, em serena comunhão com a terra. Segundo o imaginário preconcebido, essas casas estão maioritariamente vazias, exemplarmente arranjadas (originais), com um ou outro habitante ancião e incluem, quem sabe, um lugar simpático para pernoitar e provar os característicos sabores regionais da gastronomia local, uma experiência diferente da cidade. Desse ponto de vista, Covas do Monte não é certamente uma aldeia preservada.
Nesta aldeia mora cerca de meia centena de habitantes. Passando pelas suas ruas vêem-se as casas típicas de aparelho de pedra cobertas a lousa, umas em bom estado de conservação, outras em ruína. Mas vêem-se também muitas onde o tijolo, o reboco, a telha cerâmica, os caixilhos de alumínio, a estrutura de betão armado e tantos outros materiais genéricos aparecem, ora em ampliações, ora em volumes novos. As práticas ancestrais de construção, ampliando a base do edificado com pedra local e tabique, permanecem, só que os processos contam agora com novos materiais, tecnicamente mais eficazes, de execução mais simples e económica. E isto não é diferente do que se passa noutros lugares. Em comparação com as aldeias vizinhas, onde as actividades ligadas ao turismo rural são mais visíveis, a iniciativa Terra Amada considerou que em Covas do Monte o património a valorizar era o modo de vida ligado à terra e, também, as práticas agrícolas que estiveram na origem da aldeia. Em Covas do Monte, o turismo rural e a segunda habitação não têm expressão, e os terrenos agrícolas estão cultivados: há milho, vinho e azeite e, sobretudo, um dos maiores rebanhos cabris do país, com cerca de duas mil cabeças. Foram estas características que motivaram a escolha desta aldeia como local-piloto para a iniciativa. Apesar da hegemonia da arquitectura no processo, o património a preservar não é um património arquitectónico, mas um património cultural e humano.
A ARQUITECTURA COMO FESTA
A decisão de escolher Covas do Monte foi responsabilidade da iniciativa Terra Amada, mas a identificação das intervenções específicas a levar a cabo coube, em primeiro lugar, à (então) Junta de Freguesia de Covas do Rio. Para as intervenções nas propriedades privadas, perguntou-se, batendo porta a porta, se os moradores teriam alguma necessidade especial. Os poucos que responderam positivamente foram atendidos.
Os trabalhos prévios de levantamento e projecto funcionaram em grupo com cinco alunos do curso de arquitectura, no seu tempo livre, fora do programa curricular do curso, acompanhados por dois docentes ligados a este programa desde o início do ano lectivo. Na fase de preparação e execução das obras, coube a esses alunos a tarefa de gerir os aspectos logísticos de gestão dos materiais e de coordenação dos voluntários. “A drogaria mais próxima”, para comprar um parafuso que faltasse, “fica a 40 minutos de distância”, em São Pedro do Sul. Essa distância exigiu um grande rigor na preparação dos trabalhos. Por depender exclusivamente de doações e patrocínios, a incerteza de poder ter acesso aos materiais previstos em projecto foi uma premissa acrescida na fase de concepção. Por isso, desde o início da angariação dos apoios junto das empresas, entre Abril e Agosto (processo que foi exclusivamente conduzido pela organização da iniciativa), os projectos foram sendo alterados até à última hora, de modo a ser possível concretizar a obra com os materiais disponibilizados e no curto espaço de tempo de mobilização da mão-de-obra. No momento de funcionamento da escola-estaleiro, estiveram envolvidos 50 alunos e angariou-se apoio de 54 empresas e instituições, e a operação ascendeu a um valor de aproximadamente 100 mil euros, excluindo o valor do trabalho voluntário.
As 50 vagas para estudantes de arquitectura anunciadas no site da iniciativa esgotaram rapidamente, o que levou a que, durante os dez dias em que o estaleiro-escola esteve montado, a população da aldeia tivesse duplicado. Cada voluntário contribuiu com o valor da sua inscrição para ajudar nos custos de alimentação e dormida. Acamparam em tendas no Campo das Oliveiras, uma zona de acampamento dentro da aldeia, o que implicou que a organização fornecesse um reservatório de água e montasse uma instalação eléctrica dedicada. Os balneários já existentes foram reforçados pelo município de São Pedro do Sul com os equipamentos portáteis habitualmente usados no Festival Andanças.
Com as devidas diferenças de escala e de propósito, a dinâmica criada, com a espectativa de convívio e partilha com um grupo alargado de estudantes de vários pontos do país e de Espanha, e com os habitantes da aldeia, tem a dimensão festiva de um festival de Verão motivado pela arquitectura, que é aliás um dos objectivos da iniciativa. Ao “aprender fazendo” proporciona-se a experiência de ver materializados os pormenores construtivos simulados em desenho durante o curso, ao mesmo tempo que se põe em prática o “aprender vivendo”, meio fundamental para congregar a energia e a alegria fundamentais para levar a cabo uma tarefa em tão curto espaço de tempo.
O valor do trabalho voluntário foi amplamente reconhecido pelos habitantes que com eles conviveram: “Tive muita pena deles; trabalharam até de noite.” Os objectivos a que se propuseram não só foram cumpridos, como foram excedidos, fizeram-se arranjos exteriores, recuperou-se mobiliário e limparam-se mais caminhos do que o projectado. A iniciativa deixou o perfume do êxito e a noção de missão cumprida, abrindo a possibilidade de planear um próximo estaleiro-escola em Vale de Papas, outra aldeia do distrito de Viseu.
MISSÃO CUMPRIDA
Foram refeitas coberturas em lousa, recuperados os engenhos da azenha e do moinho de uso comunitário e foram pintadas as paredes e janelas da antiga escola, onde funciona o restaurante que serve de principal local de encontro aos “Amigos de Covas do Monte”. Os caminhos íngremes e de pavimentação irregular foram limpos e instalaram-se guardas e corrimãos em ferro de modo a atenuar o desconforto do seu uso, que se agudiza no Inverno com as chuvas e o estrume das cabras.
Algumas casas particulares, que sofriam de graves carências de habitabilidade foram objecto das intervenções mais profundas. Em atenção às boas regras da intervenção no património, foram projectados sistemas de compartimentação leve em madeira. Apesar disso, o trabalho, limitado pelos materiais disponíveis, foi feito em placas de gesso cartonado com montantes metálicos. A par das janelas de madeira pré-fabricadas e com vidro duplo, dos móveis de cozinha standard e com “vigas de madeira lamelada que vieram de Lisboa”, repetiu-se o modo e as estratégias de intervenção que a aldeia tem vindo a perpetuar, porque afinal os materiais de construção já não são de um lugar específico. No entanto, distingue-se o diálogo ponderado entre novo e antigo e a reversibilidade de todas as soluções, garantindo o cunho da qualidade disciplinar da arquitectura.
QUESTÕES EM ABERTO
O grande contributo desta iniciativa é a possibilidade de redefinição das prioridades na intervenção no património rural, destacando-se a atenção dada à preservação e à valorização dos modos de vida e das economias em funcionamento, em detrimento da invenção de novos programas que apenas justificam a recuperação de edifícios cujo destino, tantas vezes, é ficarem vazios. Simultaneamente, apesar do carácter aparentemente simples das intervenções, reclama-se a prática da manutenção continuada do edificado como acto de arquitectura possível e desejado. Estas realizações concretas e a esperança de gerarem um efeito desmultiplicador – alguns habitantes já têm continuado os processos de valorização das construções – têm, fundamentalmente, um valor demonstrativo. Tal como nas operações de mobilização urbanas, esta iniciativa mostra como é possível envolver as populações e, com recursos limitados, espoletar dinâmicas transformadoras de grande potencial. A inteligência desta intervenção em Covas do Monte reside, precisamente, na normalidade da sua arquitectura e na capacidade de os arquitectos fazerem a síntese de dinâmicas territoriais e sociais bem mais complexas. A generosidade dos voluntários demonstra ser possível pôr em marcha novos mecanismos de intervenção, em que os arquitectos podem e devem ter uma posição preponderante, apesar de os objectivos a atingir não serem exclusivamente a “excelência” ou a qualidade material do “património”.
Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 322-325.
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