Após um longo período de negociações com o município de Veneza, já nada parece poder impedir a execução de um projecto polémico assinado pelo OMA, de Rem Koolhaas, para o centro de Veneza: a transformação do Fontego dei Tedeschi, o palácio dos alemães, numa megastore da Benetton. O edifício, um palácio do século xvi, localiza-se junto à Ponte de Rialto e, em 2008, foi vendido em hasta pública pela quantia de 53 milhões de euros. Com uma área de construção de 8629 m2, para além dos 1098 m2 de túneis e dos 1113 m2 de área descoberta, o edifício é representativo do carácter de Veneza e, como tal, é o objecto de desejo de muitos, acessível apenas a alguns e propriedade de um só.
Apesar de ter uma história marcada pelo comércio, primeiro como sede de negociantes alemães, no século XIX como alfândega e, posteriormente, como edifício de correios, a ideia de transformar o edifício num grande espaço comercial tem indignado a comunidade de Veneza. Entre 2008 e 2012, com a aprovação institucional, foram apresentadas duas versões oficiais do projecto. A primeira, mais arrojada, reflecte a força do desenho do escritório holandês e expressa um desejo de transformação característico, marcado pela inserção de umas escadas internas (rolantes e rotativas), de uma clarabóia percorrível (que cobre um pátio transformado em espaço de eventos) e de uma cobertura com um amplo terraço panorâmico. Uma proposta rejeitada pelos “puristas da conservação” e pelos serviços do município de Veneza, particularmente receosos do novo terraço. A rejeição sugeria a “redução” do impacto de algumas destas opções. A segunda proposta reduziu o terraço a um simples belvedere coberto e retirou as escadas rolantes do interior do pátio. As alterações introduzidas no projecto e o pagamento de seis milhões de euros ao município de Veneza permitiram a aprovação do projecto. As contrapartidas financeiras pagas pela Benetton foram justificadas pelo prefeito da cidade, Giorgio Orsoni, como uma “troca urbana”, ou seja, um acerto entre o público e o privado reconhecido pela lei. Esta negociação, por vezes caracterizada como um processo “louco”, marcada por inúmeras flutuações e polémicas, transformou o projecto numa solução de compromisso que enfraqueceu o resultado final. Algumas nuances ou pequenas alterações seriam porventura insignificantes na qualidade geral da intervenção, no entanto, e pelo contrário, as profundas alterações a que o projecto foi sujeito reduziram-no a um desenho vulgar, semelhante a qualquer outro “pronto-a-vestir”. O erro, e/ou equívoco, foi gerado nas formas de abordagem ao problema, tanto nos jornais como nas instituições, uma vez que se elas se centraram quase exclusivamente nas questões de forma, remetendo o edifício para uma noção simplificada de preexistência.
Koolhaas justificava-se citando o projecto original de Fra Giocondo e as acções de transformação, naturais, que acompanharam o seu restauro. Assim, manteve o debate sobre a dicotomia novo-velho, remetendo a questão para um nível apenas semântico. As posições dividiram-se. De um lado, aqueles que denunciaram o abuso e a descaracterização da primeira proposta; do outro, os que aplaudem o patrocínio da Benetton. No debate, torna-se cada vez mais visível a ausência de uma ideia para a cidade, sem se debaterem os modos de integração de novas formas de ocupação do espaço, nem as necessidades e exigências de um lugar tão especial, deixando-o à mercê das opções dos investidores e das circunstâncias de polémicas populistas.
A principal contradição que ocorreu durante a apreciação do projecto foi a exaltação da função pública do edifício por parte do município, que defendeu a transformação do pátio numa praça urbana, enquanto na cobertura optou por uma visão formalista, que reduziu o terraço a uma varanda coberta. A alteração distorceu a configuração original do projecto, enfraquecendo a sua fruição “vertical” e diminuindo a sua relevância na cidade – tal como Koolhaas insistiu, matando o que representava a sua principal qualidade. A realização do terraço permitia ter uma grande área de piso numa cota elevada, dotando a cidade de um ponto de vista que nunca teve.
Afastadas de uma visão urbana fundada nos princípios modernistas, muitas cidades europeias usam paisagens, enquadramentos, perspectivas e outros cenários como referências urbanas para definir uma ideia da cidade e do seu potencial futuro. Cidades como Hamburgo, Manchester, Amesterdão, têm características eventualmente semelhantes a Veneza, o seu desenvolvimento apoiou-se numa economia com base no comércio marítimo ou fluvial. A estrutura histórica dessas cidades e dos seus edifícios decorre dessa relação com a água. A orientação do seu desenvolvimento urbano tende a definir-se segundo políticas sustentadas numa ideia de cidade. As escolhas recentes de Veneza sugerem a ideia de cidade à venda – compra quem oferece mais –, revelando-se desinseridas de uma visão de longo prazo, de tal modo que as posições e interesses dos actores envolvidos no processo se fragmentam, incluindo os habitantes da cidade. Este projecto mostra que, se essa orientação económica tem efeitos urbanos, também tem efeitos perversos na possibilidade de construir edifícios singulares, forçando soluções de compromisso que pouco ou nada têm a ver com uma ideia de cidade.
Este artigo foi publicado no J-A 249, Jan — Abr 2014, p. 340-341.
|