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Maqueta experimental



Isabel Barbas (Texto) / André Cepeda (Fotografia)

16 035 KG

Casa Girassol, Coimbra. Projecto de Pedro Bandeira com Pedro Ramalho

A verdadeira ocupação das pessoas deveria ser voltar para a escola e pensar sobre o que quer que fosse que estavam a pensar antes de alguém ter aparecido e ter dito que tinham de ganhar a vida.
Buckminster Fuller

A arquitectura só sobrevive onde nega a forma que a sociedade espera dela. Onde se nega a si própria transgredindo os limites que a história lhe definiu.
Bernard Tschumi, Architecture and Transgression, 1975

ARQUITECTURA EXPERIMENTAL

A Casa Girassol é um projecto com vários capítulos. É uma ideia maturada e concretizada em desenhos, maquetas e projectos. Como tantas outras arquitecturas de Pedro Bandeira, esta ideia – fazer uma casa rodar 360° – é pretexto para uma reflexão mais alargada sobre um dado tema arquitectónico e deu origem a várias versões. Este projecto é uma casa rotativa, uma ideia aplicada à arte concreta da construção e que oferece hipóteses teóricas e formais para problemas reais da relação entre o homem e o ambiente natural e ou construído. É uma arquitectura experimental para um cliente concreto. Metodologicamente, é o contrário dos seus “Projectos Específicos para um Cliente Genérico”, mas conceptualmente é um processo idêntico, partindo de um olhar crítico como alternativa aos modos correntes de concepção arquitectónica. Em 2011, uma primeira versão do projecto (com Dulcineia Santos) venceu o prémio SIM, promovido pela Samsung, no valor de 25 mil euros – um prémio que tinha como objectivo reconhecer propostas inovadoras no âmbito das indústrias criativas. Mas depois de três anos de trabalho, em que o projecto foi levado ao mais ínfimo pormenor, a obra não vai avançar, ou pelo menos tal não vai acontecer no lugar para onde foi projectada. Inesperadamente, o lote de terreno para o qual já tinha autorização prévia foi atravessado por cabos de alta tensão, inviabilizando a sua construção. Ironia do destino: a empresa responsável pela cablagem, que se afirma no domínio das energias alternativas, é a responsável pela não-realização de um projecto que procura a máxima eficiência energética e ambiciona a auto-sustentabilidade.

2005
PRIMEIRO CAPÍTULO

A génese da Casa Girassol está em desenhos e colagens de 2005, anteriores ao cliente e ao terreno que agora vai ser electrocutado. Os projectos Casa na Árvore I, de 2005, e Casa na Árvore III, de 2007-2008, fazem parte da série publicada em 2006 no livro Projectos Específicos para um Cliente Genérico, investigações arquitectónicas que cruzam em complementaridade, textos, referências, colagens, maquetas e desenhos. Pedro Bandeira afirma que são “projectos que tentam chamar a atenção para um problema”, ideias que se querem testar na especificidade da prática a partir da idealização de um programa e cliente. Neste lote de projectos, além das casas nas árvores, há outras casas (Carimbo, Emergente, Sem Pés Nem Cabeça, Child Wood, etc.), mas a variedade de programas, formas e temáticas exploradas é grande, das Torres Colon a Babel. Nestas propostas, a teoria, a história, a crítica e a prática aparecem intricadas como “programas” de projecto, levando à idealização de arquitecturas a meio caminho entre a realidade e a ficção, entre a ironia e o documento, entre a arte e a arquitectura. Podemos interpretar estes trabalhos como “pontes” que “superam a separação entre artistas, arquitectos e engenheiros”, tal como fazia El Lissitzky, no “patamar onde se muda da pintura para a arquitectura”.

Pedro Bandeira fez o curso de arquitectura na Universidade do Porto, no momento em que a faculdade se transferia das Belas-Artes para o novo edifício projectado por Álvaro Siza. Nesse sentido, a exposição que neste último inverno comissariou no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Escola do Porto: Lado B. Uma História Oral (1968-1978), é, de certa forma, um “regresso à origem”, revelando os antecedentes revolucionários e a influência dos situacionistas nos arquitectos da Escola do Porto ao longo dos anos 70. Ao invés da “história oficial” da Escola do Porto, onde reina a mitologia genealógica Távora-Siza-Souto de Moura, Pedro Bandeira confirmou o espírito crítico e a procura de liberdade, reflexão e pensamento que tem vindo a cultivar, afastando-se do formalismo que a reprodução acrítica de modelos pode gerar. Encontramos as ideias de Bandeira nas palavras de Mário Ramos, um dos arquitectos Lado B:

A arquitectura é principalmente uma maneira de pensar. Pode alguém saber desenhar muito bem os pormenores todos, mas se não tiver um pensamento bem estruturado faz asneira.

A peça central da exposição Lado B é um projecto de Mário Ramos e Fernando Barroso chamado Organização Insurrecional do Espaço, que propõe aterrar com areia a Avenida dos Aliados, no Porto. A proposta, dos anos 70, tem eco no projecto de concurso em que Bandeira e Pedro Ramalho propuseram relocalizar a Ponte D. Maria Pia, construída por Eiffel em 1877, no quarteirão da Companhia Aurifícia. A proposta é uma imagem que altera de forma radical o skyline da cidade, e teve um eco mediático igualmente radical quando foi apresentada em 2013. Para lá da especulação, é uma utopia possível, porque foi concebida e orçamentada de forma realista. É uma imagem que critica as políticas de regeneração urbana, aponta soluções alternativas para problemas aparentemente insolúveis e nomeia a teoria e a história da arquitectura levando-as à discussão pública. Estas propostas que antecedem a Casa Girassol estão na senda de uma arquitectura experimental, à semelhança das arquitecturas radicais dos anos 60/70, em que as teorias se ilustravam com imagens, “pensamentos-visões”, cenários e até ficções futuristas relacionadas com a condição de crise do contemporâneo. Além destas imagens de projecto, Bandeira tem investigado e escrito sobre a imagem e a fotografia na arquitectura. Tanto na prática como na teoria, trata-se de compreender a importância da imagem na representação de uma ideia arquitectónica e usá-la como meio primordial de comunicação, uma forma de expandir o campo da prática e da discussão da arquitectura.

A radicalidade das suas propostas lembra a máxima situacionista “A subversão constrói um novo mundo”, e transporta-nos para uma sociedade do espectáculo em que a superação da arte só se concretiza pela transformação ininterrupta do meio urbano. No limite, há uma espécie de “antidesign” que recorre a colagens e fotomontagens e filmes para construir um discurso radical, com ironia e, até, com cinismo.

2011
SEGUNDO CAPÍTULO

A arquitectura não tem de ser fixa. Os projectos Casa na Árvore I e Casa na Árvore III já exploravam este interesse pela mobilidade da obra. A primeira, construída sobre uma plataforma elevatória, permitia um isolamento pontual: uma referência à cidade-jardim, quando a casa está no chão, uma referência à cidade moderna, quando está levantada. A segunda, uma proposta de casa giratória para um loteamento em Caminha, parece sobrepor a casa Dymaxion de Buckminster Fuller com a Villa Girasole de Angelo Invernizzi. Foi esta segunda proposta que foi desenvolvida em 2010-2011 como Casa Girassol, em co-autoria com Dulcineia Santos, e que venceu o prémio de inovação tecnológica SIM 2011. A optimização das possibilidades oferecidas pela tecnologia evocam de imediato o pensamento de Buckminster Fuller, que ambicionava encontrar formas inovadoras para intervir e habitar o planeta. A Casa Girassol transmite esta crença no potencial da tecnologia, aliando inovação, poética e função. Ao rodar 360°, não só consegue a máxima eficiência energética como propõe uma nova estética associada ao movimento. Os desenhos e as diferentes formas – porque se trata de uma engrenagem que se pode adaptar a diferentes pressupostos e situações – evidenciam sempre essa “relação dinâmica com a paisagem”.

Formalmente, remete para memórias do construtivismo soviético, especificamente para projectos que integram estruturas rotativas, como o Monumento à III Internacional, de Tatlin. À parte os ideais revolucionários, a espiral que envolve a pirâmide, o cone e o cilindro de cristal rotativos transmitem o dinamismo da utopia tecnológica. De igual forma, as linhas de força – que expressam a energia – estabelecem uma relação de tempo e espaço. Artistas como Marcel Duchamp, Alberto Giacometti ou Francis Picabia investigaram plasticamente estas relações nas suas propostas para “estruturas rotativas” que expressavam uma vontade de domínio sobre o tempo. Também Angelo Invernizzi, engenheiro italiano, idealizou a Villa Girasole, que construiu em 1935, perto de Verona. A máxima de Le Corbusier “uma casa é uma máquina de habitar” tornava-se literal: os pormenores construtivos dos eixos de rotação, as estruturas de betão apoiadas em rodas sobre uma plataforma giratória, os materiais flexíveis capazes de absorver deformações decorrentes do movimento e o revestimento exterior em placas de alumínio fazem lembrar as soluções utilizadas na fuselagem dos aviões.

A proposta de Pedro Bandeira e Dulcineia Santos ganhou o prémio SIM da Samsung por aliar as tecnologias de informação, mecânicas e electrotécnicas às “energias limpas”, o vento e o sol. A possibilidade de monitorização e de reacção “minuto a minuto” abrem a hipótese de ser auto-sustentável numa perspectiva energética. E a arquitectura transforma-se numa tecnologia verde capaz de se adaptar a diferentes circunstâncias, desde o programa funcional até aos diferentes contextos territoriais, institucionais e empresariais. O êxito e a realização do projecto dependiam do encontro destas sinergias.

2013
TERCEIRO CAPÍTULO

Com a pergunta “Você sabe quanto pesa a sua casa?”, Buckminster Fuller dá significado ao pensamento do projecto como acto visionário e tecnologicamente adequado ao planeta. A Casa Girassol responde a esta questão: pesa 16 035 quilos. O cliente e engenheiro do projecto, Filipe Bandeira, sonhou com uma casa giratória. Em diálogo com a restante equipa projectou uma estrutura metálica que responde com fluidez às exigências de pré-fabricação, montagem, articulação e leveza da estrutura. As peças de conexão, os prumos, as diversas componentes estruturais dos níveis horizontais, verticais e a cobertura foram pensados como peças de um puzzle: cada peça tem uma característica única e particular de encaixe e relação com outra. Cada peça é descrita, desenhada e detalhada. A cada elemento corresponde um lugar específico e um peso concreto. Esta estrutura pode ser montada e desmontada e, tal como em produtos de design industrial, pode receber acabamentos diferentes ou variações na cor, desenho e geometria dos revestimentos. Nesta versão do projecto, com colaboração de Pedro Ramalho, os acabamentos apontam revestimentos leves e materiais de natureza industrial, aplicados sobre painéis-sanduíche que preenchem a geometria opaca dos paramentos exteriores e interiores. Os envidraçados variam em forma e escala, de acordo com o compromisso assumido entre a domesticidade do espaço interior, o conforto visual de fruição da paisagem e as necessidades energéticas. A rotatividade da casa optimiza esse compromisso. Ao captar os melhores ventos e ao absorver apenas a energia solar necessária, não só garante o conforto ambiental como oferece variedade na relação com a paisagem. Em última instância, quase se poderia afirmar que esta casa, por poder acompanhar o ciclo solar diário, tem, conceptualmente, a capacidade inata de contrariar a passagem do tempo.

É possível que os ambientes trapezoidais ou romboidais que caracterizam a Casa Girassol tenham surgido das afinidades com o universo de Fuller, vinculando o projecto às suas categorias de tempo, espaço, movimento e economia. A espacialidade da casa parece resultar de uma geometria regida por um núcleo hexagonal, uma forma que encontramos na colmeia de abelhas ou na micrografia de um floco de neve: a poesia da natureza expressa no rigor da geometria. Esta forma pode decompor-se em seis triângulos equiláteros e definir seis diagonais. É esta matriz geométrica que define o desenho estrutural e espacial da casa. A partir do núcleo térreo, em forma de hexágono (que garante a rotatividade da casa e oferece um compartimento autónomo), acede-se ao piso principal, por um lanço de escadas axial. O primeiro piso organiza-se num espaço em forma de “tridente”. Três usos projectados em consola sobre a paisagem: o quarto, a sala de estar e a cozinha/sala de comer. Outro lanço de escadas dá acesso à cobertura, um mirante amparado por uma cobertura de pendente acentuada. Fazendo subir apenas um dos vértices da figura, este piso dá tridimensionalidade ao triângulo equilátero inscrito na base hexagonal. É a forma piramidal que faltava para desequilibrar o eixo da simetria giratória, evocando a diagonal futurista. O espaço “justo” para contemplar o horizonte de uma paisagem por construir.

CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS

A cablagem de alta tensão que sobrevoou o terreno que aguardava, expectante, a casa interrompeu a construção prevista. Inesperadamente, o projecto de execução remeteu as imagens da maquete para o universo das propostas imaginárias do arquitecto. Mas, tal como a paisagem giraria em torno da Casa Girassol, o mundo continua a girar e, quem sabe, um novo terreno possa vir a acolher este projecto experimental.

 

Este texto foi publicado no J-A 251, Set — Dez 2014, p. 440 – 449.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CASA GIRASOL
Localização
Urbanização Quinta do Canal, Santa Clara, Coimbra
Datas do Projecto
2011-2013
Cliente
Filipe Bandeira
Área de Construção
170 m2
Estimativa de
Custo da Obra

120 mil euros
Projecto de Arquitectura
Pedro Bandeira
e Pedro Nuno Ramalho
Projecto de Estabilidade
Filipe Bandeira